sexta-feira, 21 de junho de 2013

Que diabos está acontecendo? Uma Análise em três atos




Que diabos está acontecendo?
Uma análise em três atos.[1]



Por Raquel Weiss
            Professora de Sociologia da UFRGS - Socionautas
Contato: weiss.raquel@gmail.com

Diante da multidão que tomou as ruas em várias cidades de nosso país na última Segunda-feira, dia 17 de Junho, o tema mais recorrente que se ouvia na imprensa era a indagação a respeito do que está acontecendo. Quem são? O que querem? De onde surgiram? Jornalistas, acadêmicos, políticos, por todo lado se ouvia esse tipo de pergunta. Responder a essas perguntas é algo bastante complicado, e não creio que exista uma resposta única e definitiva, até porque se trata de um movimento em curso. Mas isso não é desculpa para nos furtarmos a uma tentativa de compreensão, e o que proponho é ensaiar uma análise a partir do repertório teórico que considero adequado, no âmbito de uma abordagem propriamente sociológica, e a partir da consideração de eventos, ideias, declarações e ações com os quais tive contato, e que me levaram a construir esse diálogo conjuntural. Apresento, então, uma análise em três atos, que considera não as manifestações como fenômenos isolados, mas a situação na qual estão inseridas, que contempla os vários atores que agem e reagem aos protestos. Cada ato corresponde a diferentes momentos desse processo e coloca o foco em diferentes aspectos envolvidos.

Primeiro Ato: É Sobre 20 Centavos
As manifestações que protestavam contra o aumento das passagens de ônibus ganharam muita visibilidade por todo o país, sobretudo em virtude do enorme volume de pessoas que foram às ruas para expressar seu descontentamento. Na mídia, nos corredores, por todo o lado, ouvia-se as pessoas perguntando: todo esse barraco é mesmo só por causa de 20 centavos?. Sim, era. Quer dizer, mais ou menos. Essa era a pauta mais evidente, mas não é uma pauta que surgiu assim, do dia pra noite. E nem era o único objeto de manifestações. Várias outras manifestações vem ocorrendo no país, e no mundo, diga-se de passagem, reivindicando as mais diversas causas, desde as mais explícitas, como no caso da chamada marcha da maconha, até movimentos cuja compreensão é mais complexa, como o Occupy, nos Estados Unidos.
No caso específico do Brasil, o que precisamos entender é que já há muito tempo tem acontecido uma movimentação incansável por parte da sociedade civil, mas sob formas que não estávamos acostumados a considerar como formas de atuação realmente políticas, porque fogem dos padrões tradicionais de mediação. Não são nem partidos, e nem movimentos sociais estruturados de formas mais tradicionais, com estruturas hierárquicas e formas de organização centralizadas e bem evidentes.
Trata-se de um outro universo que, para o olhar do observador desavisado, pareceria como um bando de jovens fazendo festa, ou coisa do gênero. Surgem expressões que não são familiares às análises tradicionais sobre a vida política: coletivos, horizontalidade, intervenção urbana. Os nomes mais burocráticos e sisudos que denominam os partidos e os movimentos sociais tradicionais dão lugar a nomes menos pretensiosos, cujo sentido muitas vezes não é explícito: Existe amor em SP, Movimento Passe Livre, Fora do Eixo, “À Deriva, Massa Crítica, Matilha Cultural e assim por diante.
Ok, eles não tem uma organização hierárquica, nem querem assumir a forma de partidos. Mas, o que eles querem? Talvez a resposta seja tão variada quanto a existência desses movimentos. No entanto, talvez seja possível esboçar alguma forma de pensar uma unidade: são pessoas, em sua maior parcela jovens, que se reúnem, em virtude de alguma visão de mundo compartilhada, com a intenção de interferir de algum modo no atual estado de coisas. No geral, são promovidos muitos eventos e discussões nos quais as causas mais caras a cada movimento são debatidas: pode ser a mobilidade urbana, a luta em favor da legalização do aborto, da promoção de causas identitárias, etc. etc. etc. O ponto de partida é sempre o diagnóstico de que alguma coisa não vai bem, seja na cidade, no estado, no país ou mesmo no mundo inteiro.
Os inimigos combatidos por esses movimentos não são tão facilmente identificáveis como em momentos passados. Talvez seja mesmo uma resposta à falta de sentido que caracteriza o nosso mundo contemporâneo. Porém, a ausência de um “único inimigo contra o qual lutar não tem como consequência a falta de propósito ou a ausência de uma causa concreta. O inimigo não é mais a ditadura. Eles valorizam a democracia, e só são possíveis porque existe a democracia. Não querem acabar com ela, não querem dizer isso tudo é uma grande porcaria, vamos jogar tudo fora e começar do zero. Eles querem, muito ao contrário, tomar posição diante dos milhares de problemas concretos que não são resolvidos pela simples existência de uma democracia. Até porque sabemos muito bem, a democracia é apenas uma forma, cujo conteúdo é construídos pelas pessoas que vivem nessa democracia, pessoas que têm a responsabilidade de pensar sobre o que queremos, sobre as consequências das leis, das práticas, das políticas públicas.
Trata-se de movimentos que abraçam a democracia, mas não se contentam em deixar as decisões a respeito de tudo  nas mãos dos representantes eleitos. Mas não são contra os partidos. Não querem abolir nem substituir o papel desempenhado pelos partidos. Talvez aqui exista uma outra concepção de democracia: não é nem a democracia representativa, do tipo, votei e paro de me preocupar, e nem uma democracia direta stricto senso. É a ideia de que a política é feita todo dia, por todo mundo. É a reação às injustiças sociais e desrespeitos indenitários cometidos diariamente, e que de quando em quando são exacerbados e acabam por virar lei: o aumento no valor do transporte público, legislações sobre o aborto, leis que tratam da homossexualidade como doença, e assim por diante.
É uma maneira de se organizar em torno de valores compartilhados, e que são retrabalhados e refletidos no contexto desses grupos. E, é claro, muitas pautas são transversais, são compartilhadas por vários desses movimentos e representam a visão de mundo de muitas pessoas. É um pouco isso o que aconteceu com os protestos diante do aumento das passagens: por todo o país já havia muitos grupos mobilizados e refletindo sobre as várias decisões políticas, inclusive com discussões intensas sobre o significado do espaço público e a questão da mobilidade. Quando governos municipais por todo o lado anunciam que vão aumentar o preço de um serviço que já é altamente precário, o movimento ganha uma força inimaginável. São pessoas que já aderiam a essa causa e que têm um alto poder de mobilização viabilizado, é claro, pelas redes sociais. Trata-se de uma causa considerada justa por uma parcela imensa da população, que leva muita gente pras ruas, por causa de 20 centavos.

Segundo Ato: Os Estudantes Baderneiros e a Sociedade de Bem
A consequência inevitável de uma reivindicação que conquista muito adeptos e que não é atendida é, evidentemente, o protesto. E protestar, nesses casos, não é coisa apenas de Facebook e Twitter. Sim, essas são plataformas importantes, de troca de ideias e de mobilização. Mas a coisa acontece, mesmo, quando se toma as ruas. Com isso surge um fato inteiramente novo: os indivíduos que antes estavam isolados, ou que atuavam em pequenos grupos, agora se reúnem numa grande massa. Caminham juntos, cantam juntos, batucam juntos, gritam juntos. Aqui, ocorre uma metamorfose. Aquelas ideias que eram consideradas boas e justas, transformam-se nos valores últimos e irredutíveis, adquirem um caráter praticamente sagrado, inviolável. E os indivíduos sentem-se mais fortes: aquilo que ele é no grupo não é o mesmo de quando ele está sozinho. E tudo o que é produzido nesse contexto passa a ser investido dessa energia extraordinária.
Trata-se do processo que na sociologia é chamado de efervescência coletiva, um fenômeno que tem um caráter dinamogênico. A ideia de dinamogenia, oriunda da biologia, significa uma alteração das funções orgânicas em função de uma intensa elevação do tônus vital, engendrada por uma superexcitação. Os momentos de manifestação são momentos de efervescência por excelência, são momentos nos quais tudo parece fazer sentido, o indivíduo experiência uma energia enorme, e isso faz com que a causa pela qual ele lute se torne a coisa mais importante de sua vida, ao menos naquele momento. E o que é mais importante é que  essas situações de efervescência podem fazer com que os indivíduos sejam capazes de atos heroicos inimagináveis, mas também de atos destrutivos. É impossível prever o rumo das coisas, e é difícil saber como cada indivíduo reage a essas situações.
Seja como for, a experiência de tomar parte numa manifestação desse tamanho é algo transformador, inesquecível e que os indivíduos não querem que acabem. E, de fato, para que os valores gestados nesse contexto continuem a ter esse mesmo apelo, é realmente necessário reviver periodicamente esses momentos, para renovar a fé nesses ideais. E isso garante uma continuidade do movimento e, inclusive, faz com que ele cresça.
Mas, evidentemente, a tomada das ruas tem uma outra consequência: a reação por parte de quem tem sua rotina perturbada. Quem não está lá dentro, quem não partilha dessa causa, vê nessas manifestações nada mais do que um incômodo. E as pessoas que param suas vidas pra fazer esse tipo de coisa, só pode mesmo ser um bando de estudantes desocupados, com a vida garantida, que só querem farra e atrapalham a vida dos cidadãos de bem que precisam trabalhar.
E, diante desse diagnóstico, fartamente reiterado pela grande imprensa, é mais do que natural que os cidadãos de bem queiram a ordem, o que implica acabar com o bloqueio do trânsito e qualquer outra coisa que interfira na rotina. E quem é responsável por restaurar a ordem? A polícia, evidentemente.
Num determinado momento, a polícia não apenas reage diante de situações consideradas ilegítimas [como pichações, depredações e afins], mas faz algo mais do que isso: faz uso da força [com todo o aparato à disposição] para conter a própria manifestação, como se a manifestação, em si mesma, fosse um ato ilegítimo. Refiro-me, evidentemente, ao dia 13, em São Paulo. Ninguém foi poupado. Não importa quem fosse ou o que estivesse fazendo, sobrou pra todo lado.
As cenas registradas feriram de tal modo a consciência pública, provocando até mesmo a reprovação por parte de organismos internacionais, que ficou difícil aceitar essa ação como legítima. Ficou difícil aceitar que o desejo de ordem valesse mais do que o Estado de Direito, que os Direitos Humanos, que a liberdade de expressão democrática. E é aqui que começa a reviravolta nessa história.

Terceiro Ato:  Não é só sobre 20 centavos é sobre tudo
No dia seguinte ao evento que acabou de ser narrado, os meios de comunicação, de forma quase milagrosa (?) começaram a contar novas versões sobre o movimento: houve desrespeito por parte da polícia. Os cidadãos de bem devem se mobilizar contra as arbitrariedade. O movimento é legítimo. Os cidadãos de bem devem fazer parte do movimento, para lutar por um Brasil melhor, contra a corrupção, contra tudo. Uma onda de patriotismo invade o país. Parece que todos voltam a sentir o pertencimento à nação e querem fazer parte desse momento histórico. Ou, dessa grande festa. Até mesmo jovens que nunca passaram perto de uma manifestação aderem ao movimento, o que, em princípio poderia ser algo muito positivo.
Diante das centenas de milhares que tomam as ruas, vê-se por todo lado a felicidade porque o gigante acordou. Entre sexta e segunda feira, algo aconteceu que o país acordou. A imprensa que antes tecia comentários depreciativos, agora exalta o movimento, a plenos pulmões. A grande pergunta é: o que aconteceu?
Creio que ninguém em sã consciência acredite que isso significou uma tomada de consciência por parte da imprensa. Houve, sim, um golpe de mestre. Podemos aqui recorrer a uma metáfora. Em vez de bater de frente contra uma força opostas a seus interesses, recorreu-se a algo que constitui o princípio fundamental de artes marciais: eu não bato de frente, eu absorvo e devolvo essa energia na outra direção. O que derruba o oponente é a força que ele mesmo engendrou. Simples, efetivo, genial.
Ou seja, em vez de criticar as manifestações, transformaram-na em algo a favor de seus interesses, e incentivando uma massa ainda maior de pessoas a tomar parte nelas. A efervescência que já era grande tornou-se gigante. E aqui é preciso introduzir uma consideração absolutamente crucial: a efervescência é, em si mesma, neutra. Ela é uma energia que pode criar, conservar ou destruir. Ela confere um caráter de sacralidade a qualquer ideal que os indivíduos naquele grupo acreditam. A manifestação não é um lugar de debate, de formação de opinião. É um lugar no qual as opiniões já formadas se manifestam e passam a ganhar uma intensidade antes impensada. E não é difícil de imaginar o que acontece quando há dezenas de pautas numa mesma manifestação. E mais, quando não são pautas apenas diversas, mas contraditórias. Não apenas pautas, mas cosmologias divergentes.
O movimento que começou como algo supra-partidário, mas alinhado com visões de centro-esquerda, e inclusive contando com apoio de partido de esquerda, de uma hora pra outra se veem lado a lado com pessoas que defendem que não se tenha partido ali. E que têm um discurso que é contrário ao governo brasileiro. Contra a presidente da República. Há gritos de Fora Dilma. E, diante disso, dois cenários pareciam possíveis, e que seriam muito interessantes para a oposição: um impeachment, colocando Michel Temer na linha sucessória, ou a derrota nas próximas eleições, preferencialmente com vitória de um candidato de centro-direita.
E se a história já estava complicada desse jeito, a coisa não para por ai. Não são apenas esses os atores em jogo. Como afirmou o cientista político Paulo Peres, esse movimento catalisou toda sorte de insatisfação e abriu a caixa de pandora, de onde tudo pode surgir: apartidários críticos ao governo, anarquistas que têm na depredação do patrimônio uma das formas de atuação, neonazistas que são contra partidos de esquerda, movimento negros, homossexuais, etc. Mas a mídia ainda insiste em mostrar que as confusões são protagonizadas por uma minoria, que o movimento é lindo.
Hoje, quinta feira, dia 20 de Junho, essas diferenças se acirram. A luta sobre os 20 centavos já foi conquistada. As dezenas de pautas continuam nas ruas, com novos desdobramentos. Em São Paulo, agressões entre os próprios manifestantes, especialmente por skinheads e neonazistas. No Rio de Janeiro, atos extremos de depredação a prédios públicos. Em Porto Alegre, uma combinação de uma ação ostensiva da Brigada Militar somada a atos de depredação a pequenos estabelecimentos comerciais, protagonizadas por pessoas que não se consegue identificar. Não se sabe quem são ou o que querem. O sentimento de tensão e insegurança leva a um questionamento sobre tudo o que está acontecendo. Cada qual significa a seu modo o que está acontecendo. Mas, sem dúvida, surge, de todos os lados, uma sensação de que algo não está muito certo.
Hoje mesmo, peguei um taxi onde tive uma conversa intrigante. O motorista, que já foi cara-pintada, afirmou que era a favor da manifestação. Que, na verdade, achava era que se deveria era quebrar tudo em Brasília, tirar todo esse governo de lá. Perguntado sobre quem ele sugeriria que fosse colocado no lugar de Dilma, tenho uma resposta que não esperava: podia ser um militar, que eles não tem essa coisa de política, e poderiam colocar ordem na casa. Nem petistas, nem tucanos, nem qualquer vitória de extrema esquerda, nem de movimento social algum.
Trata-se do paradoxo das consequências. Somos artífices da nossa história, mas as nossas demandas não são as únicas em jogo. Há interesses de todo tipo, alguns deles tem por trás um aparato de propaganda e de investigação além de nossa capacidade de imaginação. Esse é o momento de sermos inteligentes também. É o momento de usar mais a razão do que apenas o sentimento, pois é preciso estratégia, lucidez. É o momento de, mais uma vez, tomar a história com as próprias mãos, fazendo um diagnóstico sério do presente pra conseguirmos construir um futuro no qual sejam preservados aqueles valores que não são mais caros, dentre eles, a liberdade, a liberdade responsável, no sentido mais profundo do tempo, a liberdade de continuar a expressar nossas demandas e nossa visão de mundo.



[1] O presente texto foi publicado dia 21 de Junho de 2013 no site Socionautas, no seguinte endereço: http://www.socionautas.com.br/2013/06/que-diabos-esta-acontecendo-uma-analise.html

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Sobre cachorros, praças e seres humanos

Uma das características constitutivas da modernidade tem sido uma valorização crescente dos espaços públicos. É a ideia de que uma cidade não é apenas um conjunto de casas e estabelecimentos comerciais interligados por estradas, pelas quais as pessoas transitam de forma privada, para atender a seus interesses individuais. Um espaço público é aquele criado com a intenção de ser compartilhado, no qual as pessoas podem ter momentos de lazer, de discussão, de protestos, ou, simplesmentes, de dolce far niente. Da forma como eu vejo as coisas, uma cidade é tanto mais humana, tanto mais "civilizada" e avant garde, quanto mais cuida das pessoas que nela vivem, e quanto mais espaços públicos ela provê a seus cidadãos.
A partir dessas considerações gerais, gostaria de passar a uma situação mais particular, e falar da questão do espaço público na cidade que escolhi para morar: Porto Alegre. Desde a época que vinha para cá como "turista", uma das coisas que mais me chamavam a atenção eram as praças e os parques. Não são apenas parques muito bonitos, mas são parques frequentados. E as pessoas que frequentam parques e praças são o que tornam esses lugares vivos, espaços efetivamente públicos. 
E como eu achava lindo, lá na Redenção [nome carinhoso pro Parque Farroupilha], aquele espaço no qual os cachorros corriam soltos, o chamado "cachorródromo".
Esse foi, sem dúvida, um dos motivos que nos fez querer mudar pra Porto Alegre. Eu, Paulo e Filomena, a nossa border-lata. Logo que nos mudamos, descobrimos que havia outros espaços na cidade em que pessoas e cachorros convivem muito bem, como no Parcão [Parque Moinhos de Vento] e no Parque Germânia. Que alegria descobrir que em Porto Alegre as pessoas não apenas gostam de parques, mas também gostam e cuidam de seus cães.
E não tardou a descobrirmos o "nosso" cachorródromo, ou seja, aquele lugarzinho especial onde poderíamos levar a Filó pra passear, livre, leve, solta. Não apenas passear, mas correr, brincar muito: o "cachorródromo do DMAE", ou, como chamamos, a "pracinha dos cachorros". Lá, não apenas os cães se divertem, em vários horários do dia, de manhã até a noitinha, mas nós, os "pais", também fazemos grandes amizades. São pessoas das mais diversas profissões, de todas as idades, de diversas classes sociais, diversos gostos musicais, gremistas, colorados, ou nenhum nem outro. Lá, as nossas diferenças não importam, o que importa, e que constitui a base da nossa amizade, é o amor que temos por nossos cães, por cães, por animais. 



Ora, pois, mas porque cargas d`água falar do "cachorródromo do DMAE" num blog como esse aqui, que tem a intenção de discutir questões filosóficas, sociológicas e achológicas? Quem tiver a paciência de ler até o final, logo descobrirá... 
Antes, porém, algumas considerações sobre fatos recentes, que me motivaram a escrever aqui. Nesta segunda feira, quando fomos para a praça, nos deparamos como uma "sutil" mudança no cenário, mas que indicava uma profunda mudança na forma de tratar o lugar. As portas da praça estavam "abertas com cadeado". Não, não foi um erro de digitação. Havia uma corrente prendendo a porta de modo a que ela ficasse necessariamente aberta, como na foto abaixo, tirada pela Ana Goelzer:



Bem, talvez o leitor agora esteja se perguntando qual o problema de uma porta "aberta com cadeado". Para enteder do que estou falando, é preciso ter em consideração o fato que fazia dessa praça a "praça dos cachorros", um lugar ideal para levarmos nossos companheiros é justamente o fato de se tratar, até então, de um lugar completamente fechado, e, em consequência, 100% seguro. Nós sempre mantemos a porta fechada [não trancada], para evitar que os cães fujam. Outro fato a ser considerado é que, até bem pouco tempo, essa era uma praça praticamente abandonada, destinada a usos pouco higiênicos e para práticas bastante ilegais, se é que o leitor me entender. Ela não era um espaço público... era um espaço apropriado para fins privados [para não dizer, como privada mesmo, com perdão do trocadilho infame]. Aos poucos, os moradores da região começaram a frequentar o lugar, ocupar mesmo, e a praça voltou a ser um lugar público. Acho que qualquer morador de Porto Alegre conhece a praça "oficial" do DMAE, aquela bem bonita, linda mesmo, com entrada pela 24 de Outubro, com seus jardins bem aparados, onde famílias vão fazer piqueniques nos finais de semana. Mas a pracinha dos cachorros permaneceu durante muito tempo um lugar abandonado, o que se nota ainda pelos brinquedos em frangalhos, bancos quebrados, ausência de lixeiras, bebedouros e todas essas comodidades que encontramos nos parques cuidados. Mas, mesmo assim, nós, os frequentadores, voltamos a dar vida à praça, procuramos cuidar dela com carinho, providenciamos saquinhos para que a sujeira dos cachorros não fique no chão, coisas assim.
Enfim, voltemos à porta aberta com cadeado. Evidentemente, diante desse grande inconveniente, alguns de nós procuraram o pessoal do DMAE, para tentar esclarecer o fato. Resumindo a novela, parece que houve reclamação por parte de moradores da vizinhança, que não gostam de ver cachorros soltos ali na praça, porque cachorros latem ou algo assim... E o argumento da administração do DMAE, até o presente momento, é o de que a porta deve permanecer aberta para facilitar o acesso do público e para encorajar que nós não deixemos nossos cães soltos, afinal, há uma lei que proíbe que cães estejam sem guia em espaço público. Vou me abster de dar minha opinião sobre a lei. Então, ok, em vez do bom senso de continuarmos essa prática de ocupar uma praça que só é frequentada por pessoas que vão com seus cães, vamos aceitar que o DMAE se apegue a essa lei e nos impeça de continuar a prática que ali tivemos. 
Ora, essa solução, do modo que vejo, é a mais burra possível. Há uma outra, muito mais inteligente, muito mais benéfica pra todo mundo: é oficializar aquele espaço como um espaço para cachorros, seguindo a proposta do vereador Elias Vidal para a criação de um espaço "regulamentado" para cães no Parque da Redenção. Mas por que o DMAE deveria fazer isso? Por que essa deveria ser uma decisão incentivada pelo poder público? Por que não fazer dessa praça apenas mais uma como todas as outras, em que cães são tolerados apenas nas coleiras?
Pois bem, é aqui que eu queria chegar. É por isso que resolvi escrever esse post, para ensaiar uma resposta a essas questões. O ponto de partida é: o mundo está mudando, a nossa sociedade está mudando. No contexto em que vivemos, há um número cada vez maior de pessoas que se relacionam com seus cães como membros de sua família, e uma vez que os adotam, comprometem-se em lhes dar a melhor vida possível. Afinal, o cão não escolheu estar ali, e é nossa responsabilidade suprir suas necessidades básicas, e o exercício físico está entre elas. Eu poderia discutir a questão a partir do tema mais complexo do direito dos animais, mas hoje proponho uma reflexão que passa por outro caminho. O que quero dizer é que não se trata apenas de uma "praça para cachorros", mas de uma praça para pessoas que querem ir com seus cachorros, querem correr e brincar com seus cachorros.
Imaginem só se nos parques proibissem as crianças de brincar e correr! A ida ao parque perderia toda a graça. Para aqueles que tem cachorro, é mais ou menos a mesma coisa. Se, por razões diversas, não é possível que cachorros e seres humanos sempre compartilhem o mesmo espaço, seria uma medida extremamente inteligente criar espaços especificamente destinados a essa finalidade. 
Afinal, essa é uma demanda real de pessoas reais. Reais e cada vez mais numerosas. E, até onde sei, uma das grandes virtudes da democracia, especialmente em sua vertente mais contemporânea, é encorajar as diferenças, é criar um espaço público plural, no qual pessoas diferentes com interesses e visões de mundo diferentes possam participar dele. Quanto mais diversidade tivermos, melhor, ainda que para que essa diversidade ser possível seja preciso criar nichos específicos. É claro que não se trata de criar um espaço no qual só possam frequentar pessoas com cachorros, mas de um espaço no qual os cachorros tenham o direito de circular livremente, brincar uns com os outros, com pessoas que, com cachorros ou não, não se importem de ver animais felizes, que não se importem de correr o risco de levar uma lambida na cara, ou de ter sua roupa suja pela marca de patas amigas que pulam para dar um afago. Claro, todos precisam ter bom senso; não levamos a um espaço público cachorros que não interagem bem com outros cachorros ou com outros seres humanos, nem achamos que ali é um vale tudo. Assim como pais com seus filhos, tornamos esse lugar um espaço de eduacação, para criar bons hábitos, e cachorros felizes são cachorros educados, são cachorros que não são agressivos, são cachorros que nos fazem lembrar por que essa espécie foi merecedora do título de "melhor amigo do homem".
Resumindo, criar espaços como esse, que estamos sugerindo que sejam criados, é estar na vanguarda. É ter ideias inteligentes para fazer da nossa cidade um lugar cada vez melhor, em que cada vez mais pessoas tenham vontade de sair do confinamento de suas casas para compartilhar com outros momentos ao ar livre, que nos fazem pensar naquilo que há de tão bom na vida em sociedade: a própria possibilidade da interação. A interação não apenas com outros seres humanos, mas com outros seres que, por alguma razão, escolhemos como nossos companheiros cotidianos. Se nem todos os homens se sentem comovidos pela amizade que podemos criar com cães - e ninguém tem a obrigação de gostar deles, não mesmo - temos ao menos o dever, enquanto seres humanos de nosso tempo, de respeitar o direito de outros seres humanos que consideram essa amizade algo tão crucial em suas vidas. Por isso, esse é um fato tão importante.
Creio que o "caso do cadeado no DMAE" seja uma ocasião ímpar de reflexão e mobilização. De pensar em que cidade queremos. E também é o momentos dos órgãos públicos decidirem se aceitam a nossa reivindicação de pluralidade de espaços públicos, criando oficialmente o "cachorródromo do DMAE", ou se ficam presos às ideias antigas de uma sociedade que se apega comodamente às leis, só para que nada mude e, ao não mudar nada, acaba por retroceder a um passado que já não nos diz respeito. 
Eu, e meus "companheiros de praça", caninos ou humanos, queremos olhar pra frente, e queremos contribuir para a ampliar a noção do que é um "espaço público", com o espírito de reinventarmos a nós mesmo e o lugar em que vivemos.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sobre cenouras e o ano novo

Mais uma vez chegamos naquele momento do ano em que novas e velhas esperanças pipocam por todo o lado.

Mas, o que é esperar? É acreditar num outro estado de coisas possível, é renovar a fé nos antigos ideais nunca atingidos e professar a fé em novos ideais. Não importa se esses ideais são grandiosos, impessoais e abnegados, como o desejo de que a paz reine sobre a terra, ou se são apenas aqueles concernentes a nós mesmos, como o desejo de ter saúde, encontrar os amigos ou até ser bem sucedido naquela almejada dieta.

Não quer dizer que não haja diferença entre uma coisa e outra, entre os milhões de ideais possíveis. É claro que há. Entretanto, o que importa mesmo é que tenhamos ideais, é termos a capacidade de desejar.   Os ideais são para nós algo assim, como a cenoura na frente do burrico: aquilo que nos impede de simplesmente empacar.

Mas ao contrário do burro, podemos escolher nossa cenoura, que pode conduzir nosso caminho numa ou noutra direção.

Resumindo, um ótimo 2013 pra todos nós, desejo a todos que se aproximem cada vez mais de suas cenouras!

domingo, 9 de setembro de 2012

Seminário "As Formas Elementares: 100 Anos de um Clássico"

Caro leitor, quero convidá-lo a participar do Seminário Internacional/Escola de Altos Estudos "As Formas Elementares: 100 Anos de um Clássico", que estou organizando no Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFRGS. Será um evento imperdível, que reunirá os maiores especialistas nacionais e internacionais na obra de Émile Durkheim.

Para conferir a programação e fazer a sua inscrição, é só conferir o nosso site: www.durkheim-br.org

Haverá transmissão via internet, não deixe de compartilhar para seus contatos!


sábado, 21 de abril de 2012

Lisbeth Salander - A Heroína Anômica

A Trilogia "Millennium" é provavelmente o maior fenômeno literário na Europa dos últimos anos, e também tem causado frisson nos Estados Unidos. Seu autor, um jornalista sueco low-profile [com isso quero apenas dizer que não era nenhuma mega-celebridade], cuja morte prematura ainda é é cercada por controvérsias, profundamente engajado com questões morais e políticas dentre as mais relevantes de nosso tempo. Essas questões que ele enfrentou acidamente e arduamente como jornalista aparecem entranhadas durante todo o enredo, sendo apresentadas não apenas sob a perspectiva de quem sabe do que fala, mas de quem sabe muito bem como contar. Alguém que sabe, muito bem, como contar histórias, sendo capaz de prender o leitor ao longo das mais de 1.500 páginas de sua trilogia. Uma habilidade rara nos dias de hoje, essa de quase nos fazer esquecer de respirar. Sim, o livro é extremamente contemporâneo, ele nos apresenta o avesso de uma Suécia - e mesmo de uma Europa - que estava muito distante da nossa imagem de país certinho, organizado, justo, com bem estar social e pessoas muito civilizada. O machismo, o neo-nazismo, a falência moral do Estado, a corrupção em instituições públicas e privadas são o pano de fundo de toda a ação, compondo uma nova representação sobre a vida naquele país.


Porém, creio que não seja isso o segredo da narrativa de Larsson. O que de fato nos prende, o que nos fascina, o que provoca essa atração irresistível e essa sensação de estranha identidade é a grande heroína, Lisbeth Salander. Ela não tem nada, ou quase nada, do que se esperaria de um herói ou heroína tradicional. Salander não resume em sua personalidade as virtudes que amamos. Ela não é adorável. Provavelmente não a quereríamos ter como melhor amiga, mas talvez todos secretamente queiram ser um pouquinho como ela. 
Lisbeth é profundamente paradoxal. Franzina, magra, muito magra, mas extremamente forte. Ela luta boxe e briga de rua como ninguém. Ela não conhece coisas como "laços de solidariedade", amizade, identidade por pertencimento ao grupo. Mas é capaz dos mais insuspeitos e heróicos atos de altruísmo. Colocou sua vida em risco mais de uma vez, como quando foi salvar seu protegido e amigo-amante durante uma catástrofe natural.


Ela não tem qualquer respeito por algum tipo qualquer de justiça divina, trata-se de uma ideia completamente alheia a sua imaginação, e menos ainda pela justiça dos homens. Mas parece ter uma bússola moral cujo norte foi estabelecido por ela própria, e ao qual se mantém inalteradamente fiel. Mas não se trata de uma bússola interna de natureza racional, nos moldes de um imperativo categórico kantiano. Trata-se de um misto de emoções, convicções construídas no decorrer de sua turbulenta existência, em grande parte incitadas por um agudo instinto de sobrevivência.




A garota tatuada - o modo mais esteoreotipado e pobre de descrevê-la, que é o modo como os outros a vêem - não é exatamente bonita, e parece não se preocupar muito com isso. Mas, preocupa-se com sua imagem. Em parte seu modo de vestir-se foi determinado pela falta de dinheiro, mas acabou por se afirmar como um padrão estético que expressa a sua personalidade: quer roupa-se confortáveis, fáceis de vestir, urabanas, muito urbanas, e que parecem querer dizer que não liga para qualquer tipo de moda. No entanto, ela é vaidosa. Escolhe muito bem seu corte de cabelo, cuida dos seu delineador muito preto. E, sim, decide colocar implante nos seios. E gosta do que fez, gosta de ver seus seios um pouco maiores. E gosta dos seios de Mimi. E das curvas de Mimi. E aqui chegamos num dos aspectos mais intrigantes de sua personalidade. Lisbeth é fechada, muito fechada. Estranha, muito estranha. Mas profundamente bem resolvida com sua sexualidade. Ela sabe muito bem o que quer, e vive essa sexualidade de forma intensa. Ela se masturba, ela toma a iniciativa com o outro heroi da trama, Mikael Bloomkvist e não se cansa do sexo com Mimi. Ela não é lésbica, ela não é hétero e certamente não se declararia bi. Ela simplesmente não liga para classificações. Ela apenas gosta de ser livre para fazer o que quiser.






Miss Salander. Por que a amamos? Talvez cada um tenha a sua resposta e eu queria aqui tentar a minha. E acredito que o que haja de tão fascinante nessa figura seja justamente o que faz dela uma "desajustada". Sim, Salander é o tipo ideal do indivíduo anômico, aquele que não segue as regras estabelecidas, aquele que não se enquadra em nenhum grupo social, aquela que não reproduz os padrões éticos e estéticos esperados. Ela parece viver num vácuo de sociabilidade, e nesse vácuo construiu a sua personalidade singular. Nós, em nossa sociedade, queremos, mais do que tudo, ter a nossa individualidade [não confundamos isso com individualismo egoísta], queremos ter uma identidade singular, queremos nos sentir livres diante dos diversos laços que nos prendem. E Lisbeth parece representar tudo isso. Parece que justamente o fato da sociedade ter-lhe negado tudo, pelos seus semelhantes terem lhe dados as costas, ou ainda pior do que isso, a garota que sonhava com uma lata de gasolina e um fósforo não sentiu a necessidade de se enquadrar em qualquer padrão. Ela simplesmente não precisa e não quer aceitar qualquer padrão moral, qualquer ideal de justiça que lhe era apresentado. Ela simplesmente não confia neles, não acredita, desconfia. É claro que ela paga um preço por isso. Ela quer ceder diante da amizade que lhe é demonstrada pelo Super Fucking Blomkvist; ela é tocada por isso. Mas nunca cede até o fim. Quando ela parece mais forte é que vemos a sua fragilidade, que volta a ser revestida por força. 


Salander é um oxímoro: representa ao extremo o ideal moderno de singularidade, individualidade, liberdade, mas o faz justamente sendo um indivíduo que dá as costas pra qualquer tipo de ideal social. A amamos justamente por tudo o que nela aparece como um vício. De um ponto de vista sociológico, talvez a trajetória de Lisbeth e a paixão que ela desperta em nós seja a evidência de que há um profundo abismo que separa os ideais sociais que estruturam nossas consciência e modo como esses ideais se realizam nas práticas e instituições. Amamos Lisbeth porque ela desafia uma sociedade que defende o direito às mulheres, mas que é profundamente violenta e machista. Porque ela dá um tapa na cara de uma sociedade que deifica valores democráticos, mas cujas instituições que os encarnam são administradas por pessoas altamente corruptas, autoritárias e mesmo perversas, como o advogado Bjurman.  Porque ela deixa claro que a justiça é a desculpa revestida de seriedade para a perpetração de injustiças. Porque a sua experiência revela que a família, que adoramos como o núcleo de toda vida social, como lugar seguro, de proteção das crianças, pode também ser o o fulcro das mais aviltantes atrocidades. Nem mesmo os laços de sangue são garantia de alguma coisa. 


Não amamos Lisbeth simplesmente porque ela é o antípoda do cidadão modelo da sociedade em que vivemos, mas sobretudo porque a sua biografia nos faz sentir e pensar nos ideais que amamos, mas que não conseguimos realizar. Ela precisa negar tudo o que existe e, ao fazê-lo, faz-nos lembrar do que gostaríamos que existisse. E, sobretudo nisso, gostaríamos de ser como ela, um indivíduo que, diante da impossibilidade de se enquadrar em uma trajetória normal, conquista uma profunda e solitária liberdade.