sábado, 21 de abril de 2012

Lisbeth Salander - A Heroína Anômica

A Trilogia "Millennium" é provavelmente o maior fenômeno literário na Europa dos últimos anos, e também tem causado frisson nos Estados Unidos. Seu autor, um jornalista sueco low-profile [com isso quero apenas dizer que não era nenhuma mega-celebridade], cuja morte prematura ainda é é cercada por controvérsias, profundamente engajado com questões morais e políticas dentre as mais relevantes de nosso tempo. Essas questões que ele enfrentou acidamente e arduamente como jornalista aparecem entranhadas durante todo o enredo, sendo apresentadas não apenas sob a perspectiva de quem sabe do que fala, mas de quem sabe muito bem como contar. Alguém que sabe, muito bem, como contar histórias, sendo capaz de prender o leitor ao longo das mais de 1.500 páginas de sua trilogia. Uma habilidade rara nos dias de hoje, essa de quase nos fazer esquecer de respirar. Sim, o livro é extremamente contemporâneo, ele nos apresenta o avesso de uma Suécia - e mesmo de uma Europa - que estava muito distante da nossa imagem de país certinho, organizado, justo, com bem estar social e pessoas muito civilizada. O machismo, o neo-nazismo, a falência moral do Estado, a corrupção em instituições públicas e privadas são o pano de fundo de toda a ação, compondo uma nova representação sobre a vida naquele país.


Porém, creio que não seja isso o segredo da narrativa de Larsson. O que de fato nos prende, o que nos fascina, o que provoca essa atração irresistível e essa sensação de estranha identidade é a grande heroína, Lisbeth Salander. Ela não tem nada, ou quase nada, do que se esperaria de um herói ou heroína tradicional. Salander não resume em sua personalidade as virtudes que amamos. Ela não é adorável. Provavelmente não a quereríamos ter como melhor amiga, mas talvez todos secretamente queiram ser um pouquinho como ela. 
Lisbeth é profundamente paradoxal. Franzina, magra, muito magra, mas extremamente forte. Ela luta boxe e briga de rua como ninguém. Ela não conhece coisas como "laços de solidariedade", amizade, identidade por pertencimento ao grupo. Mas é capaz dos mais insuspeitos e heróicos atos de altruísmo. Colocou sua vida em risco mais de uma vez, como quando foi salvar seu protegido e amigo-amante durante uma catástrofe natural.


Ela não tem qualquer respeito por algum tipo qualquer de justiça divina, trata-se de uma ideia completamente alheia a sua imaginação, e menos ainda pela justiça dos homens. Mas parece ter uma bússola moral cujo norte foi estabelecido por ela própria, e ao qual se mantém inalteradamente fiel. Mas não se trata de uma bússola interna de natureza racional, nos moldes de um imperativo categórico kantiano. Trata-se de um misto de emoções, convicções construídas no decorrer de sua turbulenta existência, em grande parte incitadas por um agudo instinto de sobrevivência.




A garota tatuada - o modo mais esteoreotipado e pobre de descrevê-la, que é o modo como os outros a vêem - não é exatamente bonita, e parece não se preocupar muito com isso. Mas, preocupa-se com sua imagem. Em parte seu modo de vestir-se foi determinado pela falta de dinheiro, mas acabou por se afirmar como um padrão estético que expressa a sua personalidade: quer roupa-se confortáveis, fáceis de vestir, urabanas, muito urbanas, e que parecem querer dizer que não liga para qualquer tipo de moda. No entanto, ela é vaidosa. Escolhe muito bem seu corte de cabelo, cuida dos seu delineador muito preto. E, sim, decide colocar implante nos seios. E gosta do que fez, gosta de ver seus seios um pouco maiores. E gosta dos seios de Mimi. E das curvas de Mimi. E aqui chegamos num dos aspectos mais intrigantes de sua personalidade. Lisbeth é fechada, muito fechada. Estranha, muito estranha. Mas profundamente bem resolvida com sua sexualidade. Ela sabe muito bem o que quer, e vive essa sexualidade de forma intensa. Ela se masturba, ela toma a iniciativa com o outro heroi da trama, Mikael Bloomkvist e não se cansa do sexo com Mimi. Ela não é lésbica, ela não é hétero e certamente não se declararia bi. Ela simplesmente não liga para classificações. Ela apenas gosta de ser livre para fazer o que quiser.






Miss Salander. Por que a amamos? Talvez cada um tenha a sua resposta e eu queria aqui tentar a minha. E acredito que o que haja de tão fascinante nessa figura seja justamente o que faz dela uma "desajustada". Sim, Salander é o tipo ideal do indivíduo anômico, aquele que não segue as regras estabelecidas, aquele que não se enquadra em nenhum grupo social, aquela que não reproduz os padrões éticos e estéticos esperados. Ela parece viver num vácuo de sociabilidade, e nesse vácuo construiu a sua personalidade singular. Nós, em nossa sociedade, queremos, mais do que tudo, ter a nossa individualidade [não confundamos isso com individualismo egoísta], queremos ter uma identidade singular, queremos nos sentir livres diante dos diversos laços que nos prendem. E Lisbeth parece representar tudo isso. Parece que justamente o fato da sociedade ter-lhe negado tudo, pelos seus semelhantes terem lhe dados as costas, ou ainda pior do que isso, a garota que sonhava com uma lata de gasolina e um fósforo não sentiu a necessidade de se enquadrar em qualquer padrão. Ela simplesmente não precisa e não quer aceitar qualquer padrão moral, qualquer ideal de justiça que lhe era apresentado. Ela simplesmente não confia neles, não acredita, desconfia. É claro que ela paga um preço por isso. Ela quer ceder diante da amizade que lhe é demonstrada pelo Super Fucking Blomkvist; ela é tocada por isso. Mas nunca cede até o fim. Quando ela parece mais forte é que vemos a sua fragilidade, que volta a ser revestida por força. 


Salander é um oxímoro: representa ao extremo o ideal moderno de singularidade, individualidade, liberdade, mas o faz justamente sendo um indivíduo que dá as costas pra qualquer tipo de ideal social. A amamos justamente por tudo o que nela aparece como um vício. De um ponto de vista sociológico, talvez a trajetória de Lisbeth e a paixão que ela desperta em nós seja a evidência de que há um profundo abismo que separa os ideais sociais que estruturam nossas consciência e modo como esses ideais se realizam nas práticas e instituições. Amamos Lisbeth porque ela desafia uma sociedade que defende o direito às mulheres, mas que é profundamente violenta e machista. Porque ela dá um tapa na cara de uma sociedade que deifica valores democráticos, mas cujas instituições que os encarnam são administradas por pessoas altamente corruptas, autoritárias e mesmo perversas, como o advogado Bjurman.  Porque ela deixa claro que a justiça é a desculpa revestida de seriedade para a perpetração de injustiças. Porque a sua experiência revela que a família, que adoramos como o núcleo de toda vida social, como lugar seguro, de proteção das crianças, pode também ser o o fulcro das mais aviltantes atrocidades. Nem mesmo os laços de sangue são garantia de alguma coisa. 


Não amamos Lisbeth simplesmente porque ela é o antípoda do cidadão modelo da sociedade em que vivemos, mas sobretudo porque a sua biografia nos faz sentir e pensar nos ideais que amamos, mas que não conseguimos realizar. Ela precisa negar tudo o que existe e, ao fazê-lo, faz-nos lembrar do que gostaríamos que existisse. E, sobretudo nisso, gostaríamos de ser como ela, um indivíduo que, diante da impossibilidade de se enquadrar em uma trajetória normal, conquista uma profunda e solitária liberdade.