sexta-feira, 21 de junho de 2013

Que diabos está acontecendo? Uma Análise em três atos




Que diabos está acontecendo?
Uma análise em três atos.[1]



Por Raquel Weiss
            Professora de Sociologia da UFRGS - Socionautas
Contato: weiss.raquel@gmail.com

Diante da multidão que tomou as ruas em várias cidades de nosso país na última Segunda-feira, dia 17 de Junho, o tema mais recorrente que se ouvia na imprensa era a indagação a respeito do que está acontecendo. Quem são? O que querem? De onde surgiram? Jornalistas, acadêmicos, políticos, por todo lado se ouvia esse tipo de pergunta. Responder a essas perguntas é algo bastante complicado, e não creio que exista uma resposta única e definitiva, até porque se trata de um movimento em curso. Mas isso não é desculpa para nos furtarmos a uma tentativa de compreensão, e o que proponho é ensaiar uma análise a partir do repertório teórico que considero adequado, no âmbito de uma abordagem propriamente sociológica, e a partir da consideração de eventos, ideias, declarações e ações com os quais tive contato, e que me levaram a construir esse diálogo conjuntural. Apresento, então, uma análise em três atos, que considera não as manifestações como fenômenos isolados, mas a situação na qual estão inseridas, que contempla os vários atores que agem e reagem aos protestos. Cada ato corresponde a diferentes momentos desse processo e coloca o foco em diferentes aspectos envolvidos.

Primeiro Ato: É Sobre 20 Centavos
As manifestações que protestavam contra o aumento das passagens de ônibus ganharam muita visibilidade por todo o país, sobretudo em virtude do enorme volume de pessoas que foram às ruas para expressar seu descontentamento. Na mídia, nos corredores, por todo o lado, ouvia-se as pessoas perguntando: todo esse barraco é mesmo só por causa de 20 centavos?. Sim, era. Quer dizer, mais ou menos. Essa era a pauta mais evidente, mas não é uma pauta que surgiu assim, do dia pra noite. E nem era o único objeto de manifestações. Várias outras manifestações vem ocorrendo no país, e no mundo, diga-se de passagem, reivindicando as mais diversas causas, desde as mais explícitas, como no caso da chamada marcha da maconha, até movimentos cuja compreensão é mais complexa, como o Occupy, nos Estados Unidos.
No caso específico do Brasil, o que precisamos entender é que já há muito tempo tem acontecido uma movimentação incansável por parte da sociedade civil, mas sob formas que não estávamos acostumados a considerar como formas de atuação realmente políticas, porque fogem dos padrões tradicionais de mediação. Não são nem partidos, e nem movimentos sociais estruturados de formas mais tradicionais, com estruturas hierárquicas e formas de organização centralizadas e bem evidentes.
Trata-se de um outro universo que, para o olhar do observador desavisado, pareceria como um bando de jovens fazendo festa, ou coisa do gênero. Surgem expressões que não são familiares às análises tradicionais sobre a vida política: coletivos, horizontalidade, intervenção urbana. Os nomes mais burocráticos e sisudos que denominam os partidos e os movimentos sociais tradicionais dão lugar a nomes menos pretensiosos, cujo sentido muitas vezes não é explícito: Existe amor em SP, Movimento Passe Livre, Fora do Eixo, “À Deriva, Massa Crítica, Matilha Cultural e assim por diante.
Ok, eles não tem uma organização hierárquica, nem querem assumir a forma de partidos. Mas, o que eles querem? Talvez a resposta seja tão variada quanto a existência desses movimentos. No entanto, talvez seja possível esboçar alguma forma de pensar uma unidade: são pessoas, em sua maior parcela jovens, que se reúnem, em virtude de alguma visão de mundo compartilhada, com a intenção de interferir de algum modo no atual estado de coisas. No geral, são promovidos muitos eventos e discussões nos quais as causas mais caras a cada movimento são debatidas: pode ser a mobilidade urbana, a luta em favor da legalização do aborto, da promoção de causas identitárias, etc. etc. etc. O ponto de partida é sempre o diagnóstico de que alguma coisa não vai bem, seja na cidade, no estado, no país ou mesmo no mundo inteiro.
Os inimigos combatidos por esses movimentos não são tão facilmente identificáveis como em momentos passados. Talvez seja mesmo uma resposta à falta de sentido que caracteriza o nosso mundo contemporâneo. Porém, a ausência de um “único inimigo contra o qual lutar não tem como consequência a falta de propósito ou a ausência de uma causa concreta. O inimigo não é mais a ditadura. Eles valorizam a democracia, e só são possíveis porque existe a democracia. Não querem acabar com ela, não querem dizer isso tudo é uma grande porcaria, vamos jogar tudo fora e começar do zero. Eles querem, muito ao contrário, tomar posição diante dos milhares de problemas concretos que não são resolvidos pela simples existência de uma democracia. Até porque sabemos muito bem, a democracia é apenas uma forma, cujo conteúdo é construídos pelas pessoas que vivem nessa democracia, pessoas que têm a responsabilidade de pensar sobre o que queremos, sobre as consequências das leis, das práticas, das políticas públicas.
Trata-se de movimentos que abraçam a democracia, mas não se contentam em deixar as decisões a respeito de tudo  nas mãos dos representantes eleitos. Mas não são contra os partidos. Não querem abolir nem substituir o papel desempenhado pelos partidos. Talvez aqui exista uma outra concepção de democracia: não é nem a democracia representativa, do tipo, votei e paro de me preocupar, e nem uma democracia direta stricto senso. É a ideia de que a política é feita todo dia, por todo mundo. É a reação às injustiças sociais e desrespeitos indenitários cometidos diariamente, e que de quando em quando são exacerbados e acabam por virar lei: o aumento no valor do transporte público, legislações sobre o aborto, leis que tratam da homossexualidade como doença, e assim por diante.
É uma maneira de se organizar em torno de valores compartilhados, e que são retrabalhados e refletidos no contexto desses grupos. E, é claro, muitas pautas são transversais, são compartilhadas por vários desses movimentos e representam a visão de mundo de muitas pessoas. É um pouco isso o que aconteceu com os protestos diante do aumento das passagens: por todo o país já havia muitos grupos mobilizados e refletindo sobre as várias decisões políticas, inclusive com discussões intensas sobre o significado do espaço público e a questão da mobilidade. Quando governos municipais por todo o lado anunciam que vão aumentar o preço de um serviço que já é altamente precário, o movimento ganha uma força inimaginável. São pessoas que já aderiam a essa causa e que têm um alto poder de mobilização viabilizado, é claro, pelas redes sociais. Trata-se de uma causa considerada justa por uma parcela imensa da população, que leva muita gente pras ruas, por causa de 20 centavos.

Segundo Ato: Os Estudantes Baderneiros e a Sociedade de Bem
A consequência inevitável de uma reivindicação que conquista muito adeptos e que não é atendida é, evidentemente, o protesto. E protestar, nesses casos, não é coisa apenas de Facebook e Twitter. Sim, essas são plataformas importantes, de troca de ideias e de mobilização. Mas a coisa acontece, mesmo, quando se toma as ruas. Com isso surge um fato inteiramente novo: os indivíduos que antes estavam isolados, ou que atuavam em pequenos grupos, agora se reúnem numa grande massa. Caminham juntos, cantam juntos, batucam juntos, gritam juntos. Aqui, ocorre uma metamorfose. Aquelas ideias que eram consideradas boas e justas, transformam-se nos valores últimos e irredutíveis, adquirem um caráter praticamente sagrado, inviolável. E os indivíduos sentem-se mais fortes: aquilo que ele é no grupo não é o mesmo de quando ele está sozinho. E tudo o que é produzido nesse contexto passa a ser investido dessa energia extraordinária.
Trata-se do processo que na sociologia é chamado de efervescência coletiva, um fenômeno que tem um caráter dinamogênico. A ideia de dinamogenia, oriunda da biologia, significa uma alteração das funções orgânicas em função de uma intensa elevação do tônus vital, engendrada por uma superexcitação. Os momentos de manifestação são momentos de efervescência por excelência, são momentos nos quais tudo parece fazer sentido, o indivíduo experiência uma energia enorme, e isso faz com que a causa pela qual ele lute se torne a coisa mais importante de sua vida, ao menos naquele momento. E o que é mais importante é que  essas situações de efervescência podem fazer com que os indivíduos sejam capazes de atos heroicos inimagináveis, mas também de atos destrutivos. É impossível prever o rumo das coisas, e é difícil saber como cada indivíduo reage a essas situações.
Seja como for, a experiência de tomar parte numa manifestação desse tamanho é algo transformador, inesquecível e que os indivíduos não querem que acabem. E, de fato, para que os valores gestados nesse contexto continuem a ter esse mesmo apelo, é realmente necessário reviver periodicamente esses momentos, para renovar a fé nesses ideais. E isso garante uma continuidade do movimento e, inclusive, faz com que ele cresça.
Mas, evidentemente, a tomada das ruas tem uma outra consequência: a reação por parte de quem tem sua rotina perturbada. Quem não está lá dentro, quem não partilha dessa causa, vê nessas manifestações nada mais do que um incômodo. E as pessoas que param suas vidas pra fazer esse tipo de coisa, só pode mesmo ser um bando de estudantes desocupados, com a vida garantida, que só querem farra e atrapalham a vida dos cidadãos de bem que precisam trabalhar.
E, diante desse diagnóstico, fartamente reiterado pela grande imprensa, é mais do que natural que os cidadãos de bem queiram a ordem, o que implica acabar com o bloqueio do trânsito e qualquer outra coisa que interfira na rotina. E quem é responsável por restaurar a ordem? A polícia, evidentemente.
Num determinado momento, a polícia não apenas reage diante de situações consideradas ilegítimas [como pichações, depredações e afins], mas faz algo mais do que isso: faz uso da força [com todo o aparato à disposição] para conter a própria manifestação, como se a manifestação, em si mesma, fosse um ato ilegítimo. Refiro-me, evidentemente, ao dia 13, em São Paulo. Ninguém foi poupado. Não importa quem fosse ou o que estivesse fazendo, sobrou pra todo lado.
As cenas registradas feriram de tal modo a consciência pública, provocando até mesmo a reprovação por parte de organismos internacionais, que ficou difícil aceitar essa ação como legítima. Ficou difícil aceitar que o desejo de ordem valesse mais do que o Estado de Direito, que os Direitos Humanos, que a liberdade de expressão democrática. E é aqui que começa a reviravolta nessa história.

Terceiro Ato:  Não é só sobre 20 centavos é sobre tudo
No dia seguinte ao evento que acabou de ser narrado, os meios de comunicação, de forma quase milagrosa (?) começaram a contar novas versões sobre o movimento: houve desrespeito por parte da polícia. Os cidadãos de bem devem se mobilizar contra as arbitrariedade. O movimento é legítimo. Os cidadãos de bem devem fazer parte do movimento, para lutar por um Brasil melhor, contra a corrupção, contra tudo. Uma onda de patriotismo invade o país. Parece que todos voltam a sentir o pertencimento à nação e querem fazer parte desse momento histórico. Ou, dessa grande festa. Até mesmo jovens que nunca passaram perto de uma manifestação aderem ao movimento, o que, em princípio poderia ser algo muito positivo.
Diante das centenas de milhares que tomam as ruas, vê-se por todo lado a felicidade porque o gigante acordou. Entre sexta e segunda feira, algo aconteceu que o país acordou. A imprensa que antes tecia comentários depreciativos, agora exalta o movimento, a plenos pulmões. A grande pergunta é: o que aconteceu?
Creio que ninguém em sã consciência acredite que isso significou uma tomada de consciência por parte da imprensa. Houve, sim, um golpe de mestre. Podemos aqui recorrer a uma metáfora. Em vez de bater de frente contra uma força opostas a seus interesses, recorreu-se a algo que constitui o princípio fundamental de artes marciais: eu não bato de frente, eu absorvo e devolvo essa energia na outra direção. O que derruba o oponente é a força que ele mesmo engendrou. Simples, efetivo, genial.
Ou seja, em vez de criticar as manifestações, transformaram-na em algo a favor de seus interesses, e incentivando uma massa ainda maior de pessoas a tomar parte nelas. A efervescência que já era grande tornou-se gigante. E aqui é preciso introduzir uma consideração absolutamente crucial: a efervescência é, em si mesma, neutra. Ela é uma energia que pode criar, conservar ou destruir. Ela confere um caráter de sacralidade a qualquer ideal que os indivíduos naquele grupo acreditam. A manifestação não é um lugar de debate, de formação de opinião. É um lugar no qual as opiniões já formadas se manifestam e passam a ganhar uma intensidade antes impensada. E não é difícil de imaginar o que acontece quando há dezenas de pautas numa mesma manifestação. E mais, quando não são pautas apenas diversas, mas contraditórias. Não apenas pautas, mas cosmologias divergentes.
O movimento que começou como algo supra-partidário, mas alinhado com visões de centro-esquerda, e inclusive contando com apoio de partido de esquerda, de uma hora pra outra se veem lado a lado com pessoas que defendem que não se tenha partido ali. E que têm um discurso que é contrário ao governo brasileiro. Contra a presidente da República. Há gritos de Fora Dilma. E, diante disso, dois cenários pareciam possíveis, e que seriam muito interessantes para a oposição: um impeachment, colocando Michel Temer na linha sucessória, ou a derrota nas próximas eleições, preferencialmente com vitória de um candidato de centro-direita.
E se a história já estava complicada desse jeito, a coisa não para por ai. Não são apenas esses os atores em jogo. Como afirmou o cientista político Paulo Peres, esse movimento catalisou toda sorte de insatisfação e abriu a caixa de pandora, de onde tudo pode surgir: apartidários críticos ao governo, anarquistas que têm na depredação do patrimônio uma das formas de atuação, neonazistas que são contra partidos de esquerda, movimento negros, homossexuais, etc. Mas a mídia ainda insiste em mostrar que as confusões são protagonizadas por uma minoria, que o movimento é lindo.
Hoje, quinta feira, dia 20 de Junho, essas diferenças se acirram. A luta sobre os 20 centavos já foi conquistada. As dezenas de pautas continuam nas ruas, com novos desdobramentos. Em São Paulo, agressões entre os próprios manifestantes, especialmente por skinheads e neonazistas. No Rio de Janeiro, atos extremos de depredação a prédios públicos. Em Porto Alegre, uma combinação de uma ação ostensiva da Brigada Militar somada a atos de depredação a pequenos estabelecimentos comerciais, protagonizadas por pessoas que não se consegue identificar. Não se sabe quem são ou o que querem. O sentimento de tensão e insegurança leva a um questionamento sobre tudo o que está acontecendo. Cada qual significa a seu modo o que está acontecendo. Mas, sem dúvida, surge, de todos os lados, uma sensação de que algo não está muito certo.
Hoje mesmo, peguei um taxi onde tive uma conversa intrigante. O motorista, que já foi cara-pintada, afirmou que era a favor da manifestação. Que, na verdade, achava era que se deveria era quebrar tudo em Brasília, tirar todo esse governo de lá. Perguntado sobre quem ele sugeriria que fosse colocado no lugar de Dilma, tenho uma resposta que não esperava: podia ser um militar, que eles não tem essa coisa de política, e poderiam colocar ordem na casa. Nem petistas, nem tucanos, nem qualquer vitória de extrema esquerda, nem de movimento social algum.
Trata-se do paradoxo das consequências. Somos artífices da nossa história, mas as nossas demandas não são as únicas em jogo. Há interesses de todo tipo, alguns deles tem por trás um aparato de propaganda e de investigação além de nossa capacidade de imaginação. Esse é o momento de sermos inteligentes também. É o momento de usar mais a razão do que apenas o sentimento, pois é preciso estratégia, lucidez. É o momento de, mais uma vez, tomar a história com as próprias mãos, fazendo um diagnóstico sério do presente pra conseguirmos construir um futuro no qual sejam preservados aqueles valores que não são mais caros, dentre eles, a liberdade, a liberdade responsável, no sentido mais profundo do tempo, a liberdade de continuar a expressar nossas demandas e nossa visão de mundo.



[1] O presente texto foi publicado dia 21 de Junho de 2013 no site Socionautas, no seguinte endereço: http://www.socionautas.com.br/2013/06/que-diabos-esta-acontecendo-uma-analise.html

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