quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O “caso Bolsonaro” como sintoma da crise dos Direitos Humanos enquanto Ideal Contemporâneo

       Foto: Paulo Peres 



Até o presente momento, nunca havia recebido tantos pedidos para assinar uma petição como hoje, pedindo a cassação do mandato do deputado federal, Jair Bolsonaro. Isso mostra que nem tudo está perdido. Que a nossa “consciência moral” foi gravemente ofendida, e que estamos reagindo a isso. Mas, “nossa”, qual? Quem são as pessoas que se revoltam contra a atitude de um deputado que, do alto da tribuna, fazendo uso de sua prerrogativa de representar o povo, afirma que o único motivo pelo qual não estupraria sua colega parlamentar é porque ela não “merecia”. Não é o tipo de mulher que o atrai; se o fosse, seria digna de ser estuprada.

Eu penso no que aconteceu, e custo a acreditar. Não é possível que tenha sido a declaração de um deputado, um representante eleito pelo povo, na casa que deveria legislar, respeitando os parâmetros da nossa constituição. Como é possível que não lhe tenha sido tomada a palavra pelo presidente da sessão? Como é possível que colegas da Deputada Maria do Rosário, homens e mulheres, da mesma base ou da oposição, não tenham se levantado indignados, demonstrando o mais veemente repúdio? Tem alguma coisa muito errada acontecendo pra que a gente precise de uma petição pra ver se algo será feito, incluindo cassação por quebra de decoro e mesmo uma punição criminal. Liberdade de expressão é um direito conquistado a duras penas, e está sendo banalizado, como um escudo para proteger quem comete crimes de ódio, racismo, misoginia. As palavras, quando ditas, ainda mais quando ditas publicamente, são reais, têm poder de libertar, mas também de ferir, de desferir golpes mortais, golpes que atacam a dignidade à qual todo ser humano tem direito.

Infelizmente, acredito que o “caso Bolsonaro” é apenas mais um triste e aviltante processo que está em curso não apenas no Brasil, mas também em quase todos os países da Europa, nos Estados Unidos e em todos os lugares que tentaram construir a sua identidade moral baseada sobre o princípio fundamental da dignidade humana. Se somos diferentes e acreditamos em coisas as mais diversas, pairava no ar a (ilusão) de um consenso: a de que a vida humana tem valor absoluto, um dogma do qual se pôde extrair diversos outros postulados, como a igualdade de gênero, liberdade de viver segundo a orientação sexual, políticas de redistribuição de renda, etc. etc. etc. Reivindicações de colorações distintas, baseadas em diferentes fundamentos filosóficos, religiosos, culturais, jurídicos. Mas é esse dogma, sem o qual perdemos a nossa identidade, que está sob fogo cruzado. É ele que está em xeque quando não há uma reação imediata e massiva contra as declarações de Bolsonaro.

E é ainda mais grave porque não se trata de um pensamento isolado, de um criminoso ensandecido. Ora, há tempos se sabe que toda sociedade tem indivíduos criminosos, e não há como ter a ilusão de que uma sociedade sem crimes seja possível. Mas esse tipo de comportamento criminoso, que consiste em palavras e atos que ofendem diretamente o que há de mais sagrado (ou ao menos que se tinha a ilusão de que assim o fosse) nessa coletividade tão plural a que chamamos de “nosso país”, ou “Brasil” está tomando proporções alarmantes. Não são casos isolados, prontamente combatidos. É uma visão de mundo que adquire legitimidade pelo voto popular, que elege Bolsonaro como o deputado mais votado em seu estado. O sentimento que tudo isso me desperta é que nós – as pessoas que acreditam que toda vida tem valor absoluto, que ameaça ao corpo e à dignidade de qualquer ser humano é crime – falhamos em algum ponto. Talvez tenhamos acreditado que se tratava de um princípio universal e auto-evidente, fundado na natureza humana e garantido como cláusula pétrea de nossa constituição. Esquecemos que esse nosso ideal sagrado só é sagrado porque foi criado e consagrado por nós, as pessoas, que com muita luta e muito sangue derramado conseguiram erigir tal princípio ao estatuto de padrão de medida, de pedra angular sobre a qual construímos novas crenças e travamos novas e constantes disputas.


É por isso mesmo que precisamos tomar consciência de tudo o que está em jogo em fatos como esse. É preciso perceber o quanto as coisas dependem de nós pra continuar a existir, de nosso comprometimento cotidiano, do empenho em reformas no sistema educacional, das coisas que compartilhamos, dos livros que lemos, dos programas que escolhemos assistir, das palavras que dizemos. É uma luta de cada dia, que demanda a coragem e a sabedoria pra mudar as milhares de injustiças que continuam a existir, e que jamais teremos consenso a respeito de como devemos viver – ainda bem! – mas sem perder de vista que há um trabalho tremendo a se fazer para que o próprio terreno sobre o qual travamos essas lutas não se desintegre, sugado pelas forças obscurantistas que crescem e nos rondam o tempo todo. Se as grandes religiões encontraram nos vários ritos periódicos uma forma para renovar a fé nas crenças que as sustentam enquanto comunidade moral, é preciso que encontremos as nossas próprias práticas, os nossos próprios ritos, que nos relembrem porque acreditamos no que acreditamos. Talvez o debate público e a mobilização de repúdio a crimes como os de Bolsonaro, pela via da assinatura de petições, seja uma dessas muitas práticas, que precisamos para lembrar a nós mesmos no que acreditamos, e para dizer em voz bem alta, que estamos dispostos a lutar por isso.

Um comentário:

  1. A dignidade humana nunca foi um consenso ou a pedra fundamental das civilizações ocidentais. O mundo gira entorno do comércio, dos mercados e da propriedade privada, os direitos humanos sempre foram, e provavelmente continuarão sendo, algo que fica em segundo plano.
    O principal, o foco de todos os governos, dentro da sociedade capitalista, é manter a roda da economia girando, a minimização do custo e maximização da taxa de lucro e para isso, a vida e dignidade humana são um entraves, atrapalham o desenvolvimento do capital.
    Vivemos um período de crise mundial, a crise que não era problema nosso, a cada dia fica mais próxima de nós, entramos adentrando na crise do capital, que já é realidade em muitos outros países. Nesse contexto se potencializam os extremos, a extrema direita e a extrema esquerda. A crise é inevitável, mas as organizações políticas de centro-esquerda negligenciaram isso, acreditaram no fim da história, acreditaram que era possível acabar com as contradições da sociedade capitalista, não é algo possível, tentamos tornar o capitalismo mais bonito e historicamente não funcionou, pois a banca paga e recebe, o capital bate a nossa porta para cobrar a conta.
    Dentro dessa perspectiva, a qualidade de vida é menos importante, a luta por direitos se torna uma luta anticapitalista, pois não é mais possível mante-los ou amplia-los dentro da sociedade capitalista, é necessário a superação desse modo de produção, pois o que virá daqui para frente é arrocho, precarização do trabalho, desvalorização dos salários e aumento do desemprego.

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