segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A teoria ainda importa

Durante os últimos meses tive a ocasião de participar de diversos eventos acadêmicos na área de ciências humanas, nos quais assisti à divulgação de resultados de pesquisas sobre diferentes temas e de pesquisadores de diferentes níveis [graduação, mestrado, doutorado...] e de diferentes instituições [públicas e privadas]. De todas as coisas que ouvi, algo me chamou muito a atenção. Salvo algumas felizes exceções, os trabalhos de pesquisa científica parecem constituir-se de investigações "empíricas" sobre determinado assunto, estabelecendo, quando muito, correlações entre dois ou três fatores, ou descrevendo uma determinada situação "observada". Depois de ouvir a descrição dos procedimentos seguidos e dos resultados obtidos, surge a grande questão: e aí? o que isso quer dizer? qual é a relevância desses dados? Geralmente a resposta, quando há uma, é tautológica, isto é, "a descoberta de que a existência de X provoca Y quer dizer que X está relacionado com Y".

Ora, isso provavelmente não seria considerado "ciência" nem pelo mais raso de todos os positivistas... Ao que parece, por mais que as ciências humanas tenham avançado quilômetros na discussão sobre a especificidade de seu objeto, de seus procedimentos, etc., etc. etc., essas reflexões bastante refinadas ainda estão muito longe de nortear a prática científica, pois parece que cada vez mais os estudantes estão sendo treinados para depurar os seus métodos e técnicas e estão deixando de lado algo que sempre foi um elemento distintivo das ciências humanas, qual seja, a referência teórica. Agora dirijo a discussão mais diretamente ao caso das ciências sociais, área na qual me formei e em que agora atuo como pesquisadora e docente.

O que gostaria de fazer aqui é apenas de reafirmar o óbvio: os semestres dedicados aos clássicos, ou mesmo às teorias contemporâneas, não servem ao propósito de "encher linguiça", ou "dar um pouco de erudição". Se temos um, dois, três, quatro ou mais semestres dedicados ao ensino da teoria, é porque as ciências sociais - todas as três - constituíram-se como disciplinas que têm a pretensão de explicar ou compreender o mundo [ainda depende do paradigma epistemológico], e isso só é possível de ser feito no contexto de uma teoria, isto é, de um conjunto de ideias a respeito de como as coisas são ou deveriam ser, de quais as conexões são de fato relevantes, sobre o que importa conhecer e por que. Caso contrário, tudo o que se tem são massas de dados, dados estes que são apenas um dos elementos da formulação de uma explicação sobre algo.

Enfim, por mais óbvio que tudo isso pareça ao leitor bem treinado na prática da pesquisa sociológica, antropológica, etc., não se trata exatamente de uma obviedade na prática, pois se assim o fosse, certamente estaríamos vendo pesquisas de melhor qualidade, que diriam coisas mais relevantes e consistentes sobre o universo social. Mas a questão não pára por aqui. Dizer que a teoria importa não implica apenas reconhecer que os alunos precisam de uma formação teórica, ou que uma pesquisa bem fundamentada precisa operar no âmbito de um referencial teórico. Implica, mais do que isso, reconhecer a relevância de estudos que têm a teoria por objeto, ou seja, atribuir como tendo um "legítimo direito à existência" aquele tipo de investigação que se dedica a elucidar o pensamento de um autor ou de um determinado movimento, a questionar e revirar do avesso sistemas teóricos,a  refletir sobre seus limites, sobre o que de novo ainda têm a dizer sobre o mundo, e, quando possível, trazer para o debate uma nova abordagem, um novo insight, um novo modo de ver as coisas.

Sim, é claro que esta postagem é absolutamente auto-interessada. Mas, que mal há nisso? Trata-se, é claro, de tornar explícita uma convicção que norteia meus passos desde quando iniciei minha trajetória acadêmica, e que se pudesse resumir em uma frase, diria apenas "sim, a teoria importa".

3 comentários:

  1. Excelente Raquel. De fato nem mesmo o mais raso dos positivistas (seja lá o que isso for) diria que a descoberta de correlações é o objetivo da ciência. Mesmo a física não está interessada apenas em correlações entre magnitudes físicas se não houver a expectativa de que a correlação será amparada e explicada por uma teoria física.

    O que não há é uma ordem do que vem primeiro. Eventualmente podemos esbarrar numa correlação que ainda não tenha sido antecipada por nenhuma teoria, mas o fenômeno não será considerado explicado e compreendido até encontrarmos uma. Em outros casos, a correlação é antecipada pela teoria e a buscamos pelo refinamento dos instrumentos de observação e/ou experimentação, caso em que a correlação funcionará inclusive como um teste (o que não significa que será decisivo) para a teoria.

    Na biologia há um exemplo bem interessante. Antes da proposta do modelo da estrutura do DNA, Chargaff descobriu em 1947 que há uma correlação forte, nas amostras de DNA, entre as quantidades de bases citosina (C) e guanina (G) e também entre as quantidades de bases adenina (A) e timina (T). A correlação não foi antecipada, mas, de qualquer modo, saber que havia uma correlação ainda não nos iluminou em nada em saber o tipo de processo que é responsável por tal correlação, que é o principal objetivo da ciência (explicar fenômenos e mesmo correlações) e que só é satisfeito pela teoria. Hoje essa correlação é explicada pelo modelo teórico da estrutura do DNA e é mesmo previsto por ele.

    De fato, eliminar a teoria da ciência é o mesmo que eliminar a ciência.

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  2. Pois é, Eros, não é apenas nas ciências sociais que a teoria desempenha um papel crucial, mas em toda e qualquer ciência. E teremos uma ciência tanto melhor quanto melhor for a formação teórica do cientista, e se as áreas voltadas especificamente voltadas à teoria continuarem a receber o devido respeito.

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  3. Muito pertinente seu texto. A teoria é fundamental em qualquer área do conhecimento humano. Aparentemente hoje a ênfase é na "prática", o que parece denotar que a teoria é uma perda de tempo. Falta embasamento e método científico.

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