Até
o presente momento, nunca havia recebido tantos pedidos para assinar uma
petição como hoje, pedindo a cassação do mandato do deputado federal, Jair
Bolsonaro. Isso mostra que nem tudo está perdido. Que a nossa “consciência
moral” foi gravemente ofendida, e que estamos reagindo a isso. Mas, “nossa”,
qual? Quem são as pessoas que se revoltam contra a atitude de um deputado que,
do alto da tribuna, fazendo uso de sua prerrogativa de representar o povo,
afirma que o único motivo pelo qual não estupraria sua colega parlamentar é
porque ela não “merecia”. Não é o tipo de mulher que o atrai; se o fosse, seria
digna de ser estuprada.
Eu
penso no que aconteceu, e custo a acreditar. Não é possível que tenha sido a
declaração de um deputado, um representante eleito pelo povo, na casa que
deveria legislar, respeitando os parâmetros da nossa constituição. Como é
possível que não lhe tenha sido tomada a palavra pelo presidente da sessão?
Como é possível que colegas da Deputada Maria do Rosário, homens e mulheres, da
mesma base ou da oposição, não tenham se levantado indignados, demonstrando o
mais veemente repúdio? Tem alguma coisa muito errada acontecendo pra que a
gente precise de uma petição pra ver se algo será feito, incluindo cassação por
quebra de decoro e mesmo uma punição criminal. Liberdade de expressão é um
direito conquistado a duras penas, e está sendo banalizado, como um escudo para
proteger quem comete crimes de ódio, racismo, misoginia. As palavras, quando
ditas, ainda mais quando ditas publicamente, são reais, têm poder de libertar,
mas também de ferir, de desferir golpes mortais, golpes que atacam a dignidade
à qual todo ser humano tem direito.
Infelizmente,
acredito que o “caso Bolsonaro” é apenas mais um triste e aviltante processo
que está em curso não apenas no Brasil, mas também em quase todos os países da
Europa, nos Estados Unidos e em todos os lugares que tentaram construir a sua
identidade moral baseada sobre o princípio fundamental da dignidade humana. Se
somos diferentes e acreditamos em coisas as mais diversas, pairava no ar a
(ilusão) de um consenso: a de que a vida humana tem valor absoluto, um dogma do
qual se pôde extrair diversos outros postulados, como a igualdade de gênero,
liberdade de viver segundo a orientação sexual, políticas de redistribuição de
renda, etc. etc. etc. Reivindicações de colorações distintas, baseadas em
diferentes fundamentos filosóficos, religiosos, culturais, jurídicos. Mas é
esse dogma, sem o qual perdemos a nossa identidade, que está sob fogo cruzado.
É ele que está em xeque quando não há uma reação imediata e massiva contra as
declarações de Bolsonaro.
E é
ainda mais grave porque não se trata de um pensamento isolado, de um criminoso
ensandecido. Ora, há tempos se sabe que toda sociedade tem indivíduos
criminosos, e não há como ter a ilusão de que uma sociedade sem crimes seja
possível. Mas esse tipo de comportamento criminoso, que consiste em palavras e
atos que ofendem diretamente o que há de mais sagrado (ou ao menos que se tinha
a ilusão de que assim o fosse) nessa coletividade tão plural a que chamamos de
“nosso país”, ou “Brasil” está tomando proporções alarmantes. Não são casos
isolados, prontamente combatidos. É uma visão de mundo que adquire legitimidade
pelo voto popular, que elege Bolsonaro como o deputado mais votado em seu
estado. O sentimento que tudo isso me desperta é que nós – as pessoas que
acreditam que toda vida tem valor absoluto, que ameaça ao corpo e à dignidade
de qualquer ser humano é crime – falhamos em algum ponto. Talvez tenhamos
acreditado que se tratava de um princípio universal e auto-evidente, fundado na
natureza humana e garantido como cláusula pétrea de nossa constituição.
Esquecemos que esse nosso ideal sagrado só é sagrado porque foi criado e
consagrado por nós, as pessoas, que com muita luta e muito sangue derramado
conseguiram erigir tal princípio ao estatuto de padrão de medida, de pedra
angular sobre a qual construímos novas crenças e travamos novas e constantes
disputas.
É
por isso mesmo que precisamos tomar consciência de tudo o que está em jogo em
fatos como esse. É preciso perceber o quanto as coisas dependem de nós pra
continuar a existir, de nosso comprometimento cotidiano, do empenho em reformas
no sistema educacional, das coisas que compartilhamos, dos livros que lemos, dos
programas que escolhemos assistir, das palavras que dizemos. É uma luta de cada
dia, que demanda a coragem e a sabedoria pra mudar as milhares de injustiças
que continuam a existir, e que jamais teremos consenso a respeito de como
devemos viver – ainda bem! – mas sem perder de vista que há um trabalho
tremendo a se fazer para que o próprio terreno sobre o qual travamos essas
lutas não se desintegre, sugado pelas forças obscurantistas que crescem e nos
rondam o tempo todo. Se as grandes religiões encontraram nos vários ritos
periódicos uma forma para renovar a fé nas crenças que as sustentam enquanto comunidade
moral, é preciso que encontremos as nossas próprias práticas, os nossos
próprios ritos, que nos relembrem porque acreditamos no que acreditamos. Talvez
o debate público e a mobilização de repúdio a crimes como os de Bolsonaro, pela
via da assinatura de petições, seja uma dessas muitas práticas, que precisamos
para lembrar a nós mesmos no que acreditamos, e para dizer em voz bem alta, que
estamos dispostos a lutar por isso.
A dignidade humana nunca foi um consenso ou a pedra fundamental das civilizações ocidentais. O mundo gira entorno do comércio, dos mercados e da propriedade privada, os direitos humanos sempre foram, e provavelmente continuarão sendo, algo que fica em segundo plano.
ResponderExcluirO principal, o foco de todos os governos, dentro da sociedade capitalista, é manter a roda da economia girando, a minimização do custo e maximização da taxa de lucro e para isso, a vida e dignidade humana são um entraves, atrapalham o desenvolvimento do capital.
Vivemos um período de crise mundial, a crise que não era problema nosso, a cada dia fica mais próxima de nós, entramos adentrando na crise do capital, que já é realidade em muitos outros países. Nesse contexto se potencializam os extremos, a extrema direita e a extrema esquerda. A crise é inevitável, mas as organizações políticas de centro-esquerda negligenciaram isso, acreditaram no fim da história, acreditaram que era possível acabar com as contradições da sociedade capitalista, não é algo possível, tentamos tornar o capitalismo mais bonito e historicamente não funcionou, pois a banca paga e recebe, o capital bate a nossa porta para cobrar a conta.
Dentro dessa perspectiva, a qualidade de vida é menos importante, a luta por direitos se torna uma luta anticapitalista, pois não é mais possível mante-los ou amplia-los dentro da sociedade capitalista, é necessário a superação desse modo de produção, pois o que virá daqui para frente é arrocho, precarização do trabalho, desvalorização dos salários e aumento do desemprego.