quinta-feira, 11 de abril de 2013

Sobre cachorros, praças e seres humanos

Uma das características constitutivas da modernidade tem sido uma valorização crescente dos espaços públicos. É a ideia de que uma cidade não é apenas um conjunto de casas e estabelecimentos comerciais interligados por estradas, pelas quais as pessoas transitam de forma privada, para atender a seus interesses individuais. Um espaço público é aquele criado com a intenção de ser compartilhado, no qual as pessoas podem ter momentos de lazer, de discussão, de protestos, ou, simplesmentes, de dolce far niente. Da forma como eu vejo as coisas, uma cidade é tanto mais humana, tanto mais "civilizada" e avant garde, quanto mais cuida das pessoas que nela vivem, e quanto mais espaços públicos ela provê a seus cidadãos.
A partir dessas considerações gerais, gostaria de passar a uma situação mais particular, e falar da questão do espaço público na cidade que escolhi para morar: Porto Alegre. Desde a época que vinha para cá como "turista", uma das coisas que mais me chamavam a atenção eram as praças e os parques. Não são apenas parques muito bonitos, mas são parques frequentados. E as pessoas que frequentam parques e praças são o que tornam esses lugares vivos, espaços efetivamente públicos. 
E como eu achava lindo, lá na Redenção [nome carinhoso pro Parque Farroupilha], aquele espaço no qual os cachorros corriam soltos, o chamado "cachorródromo".
Esse foi, sem dúvida, um dos motivos que nos fez querer mudar pra Porto Alegre. Eu, Paulo e Filomena, a nossa border-lata. Logo que nos mudamos, descobrimos que havia outros espaços na cidade em que pessoas e cachorros convivem muito bem, como no Parcão [Parque Moinhos de Vento] e no Parque Germânia. Que alegria descobrir que em Porto Alegre as pessoas não apenas gostam de parques, mas também gostam e cuidam de seus cães.
E não tardou a descobrirmos o "nosso" cachorródromo, ou seja, aquele lugarzinho especial onde poderíamos levar a Filó pra passear, livre, leve, solta. Não apenas passear, mas correr, brincar muito: o "cachorródromo do DMAE", ou, como chamamos, a "pracinha dos cachorros". Lá, não apenas os cães se divertem, em vários horários do dia, de manhã até a noitinha, mas nós, os "pais", também fazemos grandes amizades. São pessoas das mais diversas profissões, de todas as idades, de diversas classes sociais, diversos gostos musicais, gremistas, colorados, ou nenhum nem outro. Lá, as nossas diferenças não importam, o que importa, e que constitui a base da nossa amizade, é o amor que temos por nossos cães, por cães, por animais. 



Ora, pois, mas porque cargas d`água falar do "cachorródromo do DMAE" num blog como esse aqui, que tem a intenção de discutir questões filosóficas, sociológicas e achológicas? Quem tiver a paciência de ler até o final, logo descobrirá... 
Antes, porém, algumas considerações sobre fatos recentes, que me motivaram a escrever aqui. Nesta segunda feira, quando fomos para a praça, nos deparamos como uma "sutil" mudança no cenário, mas que indicava uma profunda mudança na forma de tratar o lugar. As portas da praça estavam "abertas com cadeado". Não, não foi um erro de digitação. Havia uma corrente prendendo a porta de modo a que ela ficasse necessariamente aberta, como na foto abaixo, tirada pela Ana Goelzer:



Bem, talvez o leitor agora esteja se perguntando qual o problema de uma porta "aberta com cadeado". Para enteder do que estou falando, é preciso ter em consideração o fato que fazia dessa praça a "praça dos cachorros", um lugar ideal para levarmos nossos companheiros é justamente o fato de se tratar, até então, de um lugar completamente fechado, e, em consequência, 100% seguro. Nós sempre mantemos a porta fechada [não trancada], para evitar que os cães fujam. Outro fato a ser considerado é que, até bem pouco tempo, essa era uma praça praticamente abandonada, destinada a usos pouco higiênicos e para práticas bastante ilegais, se é que o leitor me entender. Ela não era um espaço público... era um espaço apropriado para fins privados [para não dizer, como privada mesmo, com perdão do trocadilho infame]. Aos poucos, os moradores da região começaram a frequentar o lugar, ocupar mesmo, e a praça voltou a ser um lugar público. Acho que qualquer morador de Porto Alegre conhece a praça "oficial" do DMAE, aquela bem bonita, linda mesmo, com entrada pela 24 de Outubro, com seus jardins bem aparados, onde famílias vão fazer piqueniques nos finais de semana. Mas a pracinha dos cachorros permaneceu durante muito tempo um lugar abandonado, o que se nota ainda pelos brinquedos em frangalhos, bancos quebrados, ausência de lixeiras, bebedouros e todas essas comodidades que encontramos nos parques cuidados. Mas, mesmo assim, nós, os frequentadores, voltamos a dar vida à praça, procuramos cuidar dela com carinho, providenciamos saquinhos para que a sujeira dos cachorros não fique no chão, coisas assim.
Enfim, voltemos à porta aberta com cadeado. Evidentemente, diante desse grande inconveniente, alguns de nós procuraram o pessoal do DMAE, para tentar esclarecer o fato. Resumindo a novela, parece que houve reclamação por parte de moradores da vizinhança, que não gostam de ver cachorros soltos ali na praça, porque cachorros latem ou algo assim... E o argumento da administração do DMAE, até o presente momento, é o de que a porta deve permanecer aberta para facilitar o acesso do público e para encorajar que nós não deixemos nossos cães soltos, afinal, há uma lei que proíbe que cães estejam sem guia em espaço público. Vou me abster de dar minha opinião sobre a lei. Então, ok, em vez do bom senso de continuarmos essa prática de ocupar uma praça que só é frequentada por pessoas que vão com seus cães, vamos aceitar que o DMAE se apegue a essa lei e nos impeça de continuar a prática que ali tivemos. 
Ora, essa solução, do modo que vejo, é a mais burra possível. Há uma outra, muito mais inteligente, muito mais benéfica pra todo mundo: é oficializar aquele espaço como um espaço para cachorros, seguindo a proposta do vereador Elias Vidal para a criação de um espaço "regulamentado" para cães no Parque da Redenção. Mas por que o DMAE deveria fazer isso? Por que essa deveria ser uma decisão incentivada pelo poder público? Por que não fazer dessa praça apenas mais uma como todas as outras, em que cães são tolerados apenas nas coleiras?
Pois bem, é aqui que eu queria chegar. É por isso que resolvi escrever esse post, para ensaiar uma resposta a essas questões. O ponto de partida é: o mundo está mudando, a nossa sociedade está mudando. No contexto em que vivemos, há um número cada vez maior de pessoas que se relacionam com seus cães como membros de sua família, e uma vez que os adotam, comprometem-se em lhes dar a melhor vida possível. Afinal, o cão não escolheu estar ali, e é nossa responsabilidade suprir suas necessidades básicas, e o exercício físico está entre elas. Eu poderia discutir a questão a partir do tema mais complexo do direito dos animais, mas hoje proponho uma reflexão que passa por outro caminho. O que quero dizer é que não se trata apenas de uma "praça para cachorros", mas de uma praça para pessoas que querem ir com seus cachorros, querem correr e brincar com seus cachorros.
Imaginem só se nos parques proibissem as crianças de brincar e correr! A ida ao parque perderia toda a graça. Para aqueles que tem cachorro, é mais ou menos a mesma coisa. Se, por razões diversas, não é possível que cachorros e seres humanos sempre compartilhem o mesmo espaço, seria uma medida extremamente inteligente criar espaços especificamente destinados a essa finalidade. 
Afinal, essa é uma demanda real de pessoas reais. Reais e cada vez mais numerosas. E, até onde sei, uma das grandes virtudes da democracia, especialmente em sua vertente mais contemporânea, é encorajar as diferenças, é criar um espaço público plural, no qual pessoas diferentes com interesses e visões de mundo diferentes possam participar dele. Quanto mais diversidade tivermos, melhor, ainda que para que essa diversidade ser possível seja preciso criar nichos específicos. É claro que não se trata de criar um espaço no qual só possam frequentar pessoas com cachorros, mas de um espaço no qual os cachorros tenham o direito de circular livremente, brincar uns com os outros, com pessoas que, com cachorros ou não, não se importem de ver animais felizes, que não se importem de correr o risco de levar uma lambida na cara, ou de ter sua roupa suja pela marca de patas amigas que pulam para dar um afago. Claro, todos precisam ter bom senso; não levamos a um espaço público cachorros que não interagem bem com outros cachorros ou com outros seres humanos, nem achamos que ali é um vale tudo. Assim como pais com seus filhos, tornamos esse lugar um espaço de eduacação, para criar bons hábitos, e cachorros felizes são cachorros educados, são cachorros que não são agressivos, são cachorros que nos fazem lembrar por que essa espécie foi merecedora do título de "melhor amigo do homem".
Resumindo, criar espaços como esse, que estamos sugerindo que sejam criados, é estar na vanguarda. É ter ideias inteligentes para fazer da nossa cidade um lugar cada vez melhor, em que cada vez mais pessoas tenham vontade de sair do confinamento de suas casas para compartilhar com outros momentos ao ar livre, que nos fazem pensar naquilo que há de tão bom na vida em sociedade: a própria possibilidade da interação. A interação não apenas com outros seres humanos, mas com outros seres que, por alguma razão, escolhemos como nossos companheiros cotidianos. Se nem todos os homens se sentem comovidos pela amizade que podemos criar com cães - e ninguém tem a obrigação de gostar deles, não mesmo - temos ao menos o dever, enquanto seres humanos de nosso tempo, de respeitar o direito de outros seres humanos que consideram essa amizade algo tão crucial em suas vidas. Por isso, esse é um fato tão importante.
Creio que o "caso do cadeado no DMAE" seja uma ocasião ímpar de reflexão e mobilização. De pensar em que cidade queremos. E também é o momentos dos órgãos públicos decidirem se aceitam a nossa reivindicação de pluralidade de espaços públicos, criando oficialmente o "cachorródromo do DMAE", ou se ficam presos às ideias antigas de uma sociedade que se apega comodamente às leis, só para que nada mude e, ao não mudar nada, acaba por retroceder a um passado que já não nos diz respeito. 
Eu, e meus "companheiros de praça", caninos ou humanos, queremos olhar pra frente, e queremos contribuir para a ampliar a noção do que é um "espaço público", com o espírito de reinventarmos a nós mesmo e o lugar em que vivemos.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sobre cenouras e o ano novo

Mais uma vez chegamos naquele momento do ano em que novas e velhas esperanças pipocam por todo o lado.

Mas, o que é esperar? É acreditar num outro estado de coisas possível, é renovar a fé nos antigos ideais nunca atingidos e professar a fé em novos ideais. Não importa se esses ideais são grandiosos, impessoais e abnegados, como o desejo de que a paz reine sobre a terra, ou se são apenas aqueles concernentes a nós mesmos, como o desejo de ter saúde, encontrar os amigos ou até ser bem sucedido naquela almejada dieta.

Não quer dizer que não haja diferença entre uma coisa e outra, entre os milhões de ideais possíveis. É claro que há. Entretanto, o que importa mesmo é que tenhamos ideais, é termos a capacidade de desejar.   Os ideais são para nós algo assim, como a cenoura na frente do burrico: aquilo que nos impede de simplesmente empacar.

Mas ao contrário do burro, podemos escolher nossa cenoura, que pode conduzir nosso caminho numa ou noutra direção.

Resumindo, um ótimo 2013 pra todos nós, desejo a todos que se aproximem cada vez mais de suas cenouras!

domingo, 9 de setembro de 2012

Seminário "As Formas Elementares: 100 Anos de um Clássico"

Caro leitor, quero convidá-lo a participar do Seminário Internacional/Escola de Altos Estudos "As Formas Elementares: 100 Anos de um Clássico", que estou organizando no Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFRGS. Será um evento imperdível, que reunirá os maiores especialistas nacionais e internacionais na obra de Émile Durkheim.

Para conferir a programação e fazer a sua inscrição, é só conferir o nosso site: www.durkheim-br.org

Haverá transmissão via internet, não deixe de compartilhar para seus contatos!


sábado, 21 de abril de 2012

Lisbeth Salander - A Heroína Anômica

A Trilogia "Millennium" é provavelmente o maior fenômeno literário na Europa dos últimos anos, e também tem causado frisson nos Estados Unidos. Seu autor, um jornalista sueco low-profile [com isso quero apenas dizer que não era nenhuma mega-celebridade], cuja morte prematura ainda é é cercada por controvérsias, profundamente engajado com questões morais e políticas dentre as mais relevantes de nosso tempo. Essas questões que ele enfrentou acidamente e arduamente como jornalista aparecem entranhadas durante todo o enredo, sendo apresentadas não apenas sob a perspectiva de quem sabe do que fala, mas de quem sabe muito bem como contar. Alguém que sabe, muito bem, como contar histórias, sendo capaz de prender o leitor ao longo das mais de 1.500 páginas de sua trilogia. Uma habilidade rara nos dias de hoje, essa de quase nos fazer esquecer de respirar. Sim, o livro é extremamente contemporâneo, ele nos apresenta o avesso de uma Suécia - e mesmo de uma Europa - que estava muito distante da nossa imagem de país certinho, organizado, justo, com bem estar social e pessoas muito civilizada. O machismo, o neo-nazismo, a falência moral do Estado, a corrupção em instituições públicas e privadas são o pano de fundo de toda a ação, compondo uma nova representação sobre a vida naquele país.


Porém, creio que não seja isso o segredo da narrativa de Larsson. O que de fato nos prende, o que nos fascina, o que provoca essa atração irresistível e essa sensação de estranha identidade é a grande heroína, Lisbeth Salander. Ela não tem nada, ou quase nada, do que se esperaria de um herói ou heroína tradicional. Salander não resume em sua personalidade as virtudes que amamos. Ela não é adorável. Provavelmente não a quereríamos ter como melhor amiga, mas talvez todos secretamente queiram ser um pouquinho como ela. 
Lisbeth é profundamente paradoxal. Franzina, magra, muito magra, mas extremamente forte. Ela luta boxe e briga de rua como ninguém. Ela não conhece coisas como "laços de solidariedade", amizade, identidade por pertencimento ao grupo. Mas é capaz dos mais insuspeitos e heróicos atos de altruísmo. Colocou sua vida em risco mais de uma vez, como quando foi salvar seu protegido e amigo-amante durante uma catástrofe natural.


Ela não tem qualquer respeito por algum tipo qualquer de justiça divina, trata-se de uma ideia completamente alheia a sua imaginação, e menos ainda pela justiça dos homens. Mas parece ter uma bússola moral cujo norte foi estabelecido por ela própria, e ao qual se mantém inalteradamente fiel. Mas não se trata de uma bússola interna de natureza racional, nos moldes de um imperativo categórico kantiano. Trata-se de um misto de emoções, convicções construídas no decorrer de sua turbulenta existência, em grande parte incitadas por um agudo instinto de sobrevivência.




A garota tatuada - o modo mais esteoreotipado e pobre de descrevê-la, que é o modo como os outros a vêem - não é exatamente bonita, e parece não se preocupar muito com isso. Mas, preocupa-se com sua imagem. Em parte seu modo de vestir-se foi determinado pela falta de dinheiro, mas acabou por se afirmar como um padrão estético que expressa a sua personalidade: quer roupa-se confortáveis, fáceis de vestir, urabanas, muito urbanas, e que parecem querer dizer que não liga para qualquer tipo de moda. No entanto, ela é vaidosa. Escolhe muito bem seu corte de cabelo, cuida dos seu delineador muito preto. E, sim, decide colocar implante nos seios. E gosta do que fez, gosta de ver seus seios um pouco maiores. E gosta dos seios de Mimi. E das curvas de Mimi. E aqui chegamos num dos aspectos mais intrigantes de sua personalidade. Lisbeth é fechada, muito fechada. Estranha, muito estranha. Mas profundamente bem resolvida com sua sexualidade. Ela sabe muito bem o que quer, e vive essa sexualidade de forma intensa. Ela se masturba, ela toma a iniciativa com o outro heroi da trama, Mikael Bloomkvist e não se cansa do sexo com Mimi. Ela não é lésbica, ela não é hétero e certamente não se declararia bi. Ela simplesmente não liga para classificações. Ela apenas gosta de ser livre para fazer o que quiser.






Miss Salander. Por que a amamos? Talvez cada um tenha a sua resposta e eu queria aqui tentar a minha. E acredito que o que haja de tão fascinante nessa figura seja justamente o que faz dela uma "desajustada". Sim, Salander é o tipo ideal do indivíduo anômico, aquele que não segue as regras estabelecidas, aquele que não se enquadra em nenhum grupo social, aquela que não reproduz os padrões éticos e estéticos esperados. Ela parece viver num vácuo de sociabilidade, e nesse vácuo construiu a sua personalidade singular. Nós, em nossa sociedade, queremos, mais do que tudo, ter a nossa individualidade [não confundamos isso com individualismo egoísta], queremos ter uma identidade singular, queremos nos sentir livres diante dos diversos laços que nos prendem. E Lisbeth parece representar tudo isso. Parece que justamente o fato da sociedade ter-lhe negado tudo, pelos seus semelhantes terem lhe dados as costas, ou ainda pior do que isso, a garota que sonhava com uma lata de gasolina e um fósforo não sentiu a necessidade de se enquadrar em qualquer padrão. Ela simplesmente não precisa e não quer aceitar qualquer padrão moral, qualquer ideal de justiça que lhe era apresentado. Ela simplesmente não confia neles, não acredita, desconfia. É claro que ela paga um preço por isso. Ela quer ceder diante da amizade que lhe é demonstrada pelo Super Fucking Blomkvist; ela é tocada por isso. Mas nunca cede até o fim. Quando ela parece mais forte é que vemos a sua fragilidade, que volta a ser revestida por força. 


Salander é um oxímoro: representa ao extremo o ideal moderno de singularidade, individualidade, liberdade, mas o faz justamente sendo um indivíduo que dá as costas pra qualquer tipo de ideal social. A amamos justamente por tudo o que nela aparece como um vício. De um ponto de vista sociológico, talvez a trajetória de Lisbeth e a paixão que ela desperta em nós seja a evidência de que há um profundo abismo que separa os ideais sociais que estruturam nossas consciência e modo como esses ideais se realizam nas práticas e instituições. Amamos Lisbeth porque ela desafia uma sociedade que defende o direito às mulheres, mas que é profundamente violenta e machista. Porque ela dá um tapa na cara de uma sociedade que deifica valores democráticos, mas cujas instituições que os encarnam são administradas por pessoas altamente corruptas, autoritárias e mesmo perversas, como o advogado Bjurman.  Porque ela deixa claro que a justiça é a desculpa revestida de seriedade para a perpetração de injustiças. Porque a sua experiência revela que a família, que adoramos como o núcleo de toda vida social, como lugar seguro, de proteção das crianças, pode também ser o o fulcro das mais aviltantes atrocidades. Nem mesmo os laços de sangue são garantia de alguma coisa. 


Não amamos Lisbeth simplesmente porque ela é o antípoda do cidadão modelo da sociedade em que vivemos, mas sobretudo porque a sua biografia nos faz sentir e pensar nos ideais que amamos, mas que não conseguimos realizar. Ela precisa negar tudo o que existe e, ao fazê-lo, faz-nos lembrar do que gostaríamos que existisse. E, sobretudo nisso, gostaríamos de ser como ela, um indivíduo que, diante da impossibilidade de se enquadrar em uma trajetória normal, conquista uma profunda e solitária liberdade.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sobre autonomia e teorias da justiça

Fui convidada a fazer parte de um blog colaborativo chamado justiça e desenvolvimento, mantido por pesquisadores da UFRGS ligados às áreas da filosofia, do direito e das ciências humanas. Hoje escrevi minha primeira postagem lá, analisando as ambiguidades da ideia de autonomia e a possibilidade de seu mau uso em contextos políticos, analisando o caso da decisão da Suprema Corte do México de permitir diferentes concepções de "pessoa humana" em cada estado, o que, na prática, implicaria a revogação da lei federal que discriminaliza o aborto praticado até a 12ª semana. A quem se interessar pelo tema, dê uma conferida por lá:

http://desenvolvimentojustica.blogspot.com/2011/10/autonomia-e-teorias-da-justica-uma.html

A partir de agora colocarei também aqui os links publicados lá, pois são sempre assuntos relacionados com o que discuto também aqui.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A teoria ainda importa

Durante os últimos meses tive a ocasião de participar de diversos eventos acadêmicos na área de ciências humanas, nos quais assisti à divulgação de resultados de pesquisas sobre diferentes temas e de pesquisadores de diferentes níveis [graduação, mestrado, doutorado...] e de diferentes instituições [públicas e privadas]. De todas as coisas que ouvi, algo me chamou muito a atenção. Salvo algumas felizes exceções, os trabalhos de pesquisa científica parecem constituir-se de investigações "empíricas" sobre determinado assunto, estabelecendo, quando muito, correlações entre dois ou três fatores, ou descrevendo uma determinada situação "observada". Depois de ouvir a descrição dos procedimentos seguidos e dos resultados obtidos, surge a grande questão: e aí? o que isso quer dizer? qual é a relevância desses dados? Geralmente a resposta, quando há uma, é tautológica, isto é, "a descoberta de que a existência de X provoca Y quer dizer que X está relacionado com Y".

Ora, isso provavelmente não seria considerado "ciência" nem pelo mais raso de todos os positivistas... Ao que parece, por mais que as ciências humanas tenham avançado quilômetros na discussão sobre a especificidade de seu objeto, de seus procedimentos, etc., etc. etc., essas reflexões bastante refinadas ainda estão muito longe de nortear a prática científica, pois parece que cada vez mais os estudantes estão sendo treinados para depurar os seus métodos e técnicas e estão deixando de lado algo que sempre foi um elemento distintivo das ciências humanas, qual seja, a referência teórica. Agora dirijo a discussão mais diretamente ao caso das ciências sociais, área na qual me formei e em que agora atuo como pesquisadora e docente.

O que gostaria de fazer aqui é apenas de reafirmar o óbvio: os semestres dedicados aos clássicos, ou mesmo às teorias contemporâneas, não servem ao propósito de "encher linguiça", ou "dar um pouco de erudição". Se temos um, dois, três, quatro ou mais semestres dedicados ao ensino da teoria, é porque as ciências sociais - todas as três - constituíram-se como disciplinas que têm a pretensão de explicar ou compreender o mundo [ainda depende do paradigma epistemológico], e isso só é possível de ser feito no contexto de uma teoria, isto é, de um conjunto de ideias a respeito de como as coisas são ou deveriam ser, de quais as conexões são de fato relevantes, sobre o que importa conhecer e por que. Caso contrário, tudo o que se tem são massas de dados, dados estes que são apenas um dos elementos da formulação de uma explicação sobre algo.

Enfim, por mais óbvio que tudo isso pareça ao leitor bem treinado na prática da pesquisa sociológica, antropológica, etc., não se trata exatamente de uma obviedade na prática, pois se assim o fosse, certamente estaríamos vendo pesquisas de melhor qualidade, que diriam coisas mais relevantes e consistentes sobre o universo social. Mas a questão não pára por aqui. Dizer que a teoria importa não implica apenas reconhecer que os alunos precisam de uma formação teórica, ou que uma pesquisa bem fundamentada precisa operar no âmbito de um referencial teórico. Implica, mais do que isso, reconhecer a relevância de estudos que têm a teoria por objeto, ou seja, atribuir como tendo um "legítimo direito à existência" aquele tipo de investigação que se dedica a elucidar o pensamento de um autor ou de um determinado movimento, a questionar e revirar do avesso sistemas teóricos,a  refletir sobre seus limites, sobre o que de novo ainda têm a dizer sobre o mundo, e, quando possível, trazer para o debate uma nova abordagem, um novo insight, um novo modo de ver as coisas.

Sim, é claro que esta postagem é absolutamente auto-interessada. Mas, que mal há nisso? Trata-se, é claro, de tornar explícita uma convicção que norteia meus passos desde quando iniciei minha trajetória acadêmica, e que se pudesse resumir em uma frase, diria apenas "sim, a teoria importa".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Dilemas em torno da questão do aborto: novas considerações

Escrevo esta postagem como resposta aos comentários à postagem anterior, em particular ao último comentário de TC, [veja-se a seção dos comentários à postagem "É possível um Esatdo laico sem uma sociedade laicizada?"] a quem eu agradeço pela chance de continuarmos discutindo séria e respeitosamente essa questão complicada. Precisei recorrer a uma nova postagem porque o blogger não aceita comentários demasiado longos. Pondero ainda que eu não serei capaz de responder plenamente a todas as ponderações levantadas. Tudo o que posso é indicar em linhas gerais o meu posicionamento a respeito de questões específicas. Dessa vez começo pelo final, e gostaria de primeiro distinguir a questão do direito das relações homoafetivas, com a garantia da união civil, da questão do aborto. É certo que são duas questões ainda controversas, se tomarmos a sociedade em seu conjunto, mas não as vejo da mesma forma. A questão da união homossexual, acredito, dificilmente pode ser recusada de um ponto de vista não-religioso, isto é, se não aceitamos o argumento “Deus não quer”, não vejo outro qualquer que justifique sua recusa. O outro ponto que você levanta, relacionado a isso, é mais intrincado, qual seja, quem é a opinião pública e o que é auto-determinação. Primeiro, não creio que a opinião pública possa ser equivalente de “opinião da maioria”, o que é um dilema filosófico bastante discutido. Em segundo lugar, não acredito que quem apoie a união homossexual sejam apenas homossexuais e feministas. Eu não me considero nem uma coisa, nem outra, ainda assim sou favorável a essa causa, assim como muitíssimas pessoas que acreditam no direito fundamental a se viver do modo que se quiser, desde que seu modo de vida não interfira na liberdade do outro. Agora você poderia me perguntar: e a união homossexual não pode agredir o modo de vida de determinados grupos religiosos? Sim, talvez, para aqueles que consideram isso algo absurdo, impuro, mas ai entramos no problema do embate do multiculturalismo versus direitos fundamentais do liberalismo. Do ponto de vista dos direitos liberais, prevalece o direito dos homossexuais a se unirem livremente, na medida em que se trata de uma liberdade pessoal, que não coage o outro a agir do mesmo modo, enquanto, desse ponto de vista, a reivindicação de um determinado grupo religioso de que isso seja proibido implicaria, sim, na negação da liberdade dos homossexuais, porque o modo de vida religioso [um modo de vida hipotético, não me refiro a nenhum grupo específico] se expande para além de seus limites e o impõe ao conjunto da sociedade. Se ficarmos com o ponto de vista multicultural mais radical, bem, aí não me parece ter outro resultado possível além de um conflito infindável. Acho que o respeito às liberdades individuais também é uma forma de crença mas, a meu ver, ainda é a melhor, na medida em que é a mais ampla, mais formal e mais passível de ser aceita quase consensualmente. Assim, a opinião pública a que me refiro é essa opinião coletiva que foi sendo construída pelo menos desde o Século XVIII, na qual esses valores de respeito ao indivíduo, à autonomia da sua vontade, ao questionamento racional do mundo foram se tornando parte da consciência coletiva, sendo inscritos nos códigos jurídicos, nas expressões artísticas, na moral das sociedades ocidentais.
Voltemos à questão do aborto. Creio que ela seja muito mais complicada que a questão homossexual, pois a primeira se resolve facilmente com qualquer versão não religiosa do “respeito ao indivíduo” que se adote, enquanto o aborto permanece um dilema ético de difícil resolução. Você pergunta se alguém deve ser condenado a morte se existe 99% de prova de sua culpabilidade. Eu diria que não, aliás, mesmo que houvesse 100% de culpabilidade, porque aqui está em jogo se devemos eliminar a vida de um ser humano em virtude de atos que ele cometeu, isto é, trata-se de uma punição refletida sobre um ato delituoso. O aborto não tem absolutamente nada a ver com isso, não se trata de uma condenação. Se trata de saber, primeiramente, o que constitui a vida. É uma questão repleta de gradações e creio que cada uma delas deva ser tratada separadamente. Aborto em caso de feto anencefálico põe em questão se se pode dizer do ser em questão que seja propriamente um indivíduo, ou se deve traze-lo ao mundo, dada sua absoluta incapacidade de viver fora do útero. Essa é uma questão em relação a qual a justiça brasileira, por exemplo, já se pronunciou. Outra coisa são as situações em que há risco de vida para a mãe, independente da idade do feto, situação em que há, conforme o caso, duas vidas em jogo, e não creio que exista um critério seguro e absolutamente certo para decidir entre ambas. Finalmente, há a questão, que já disse antes, de se determinar em que ponto podemos dizer do embrião ou do feto que seja propriamente uma pessoa. Para os católicos, passa a existir vida a partir do momento em que o espermatozoide encontra o óvulo. Para a ciência, não existe uma determinação consensual sobre quando começa o que chamamos de “ser humano”, mas existem, por exemplo, parâmetros tais como o momento em que se forma o sistema nervoso, que é quando existem condições para que o feto tenha “sensações”. Creio que uma das justificativas plausíveis para a decisão de se praticar seja essa que se apoia nesses dados que estabelecem que antes de um determinado período o feto não possui um sistema nervoso constituído, assumindo-se que antes disso não podemos falar da existência de um ser humano, que sofreria com o ato. Quanto ao ser-próprio da mulher, uma visão diferente é aquela que afirma que o constitui o ser da mulher não é o ser-mãe, ser mãe é uma escolha que a mulher pode fazer e, a partir do momento que o faz, tem o dever de zelar pelo novo ser que decidiu criar [há argumentos biológicos, antropológicos e sociológicos a esse respeito, mas tratar deles aqui tomaria muito tempo]. Mas agora chego no ponto de suas considerações que vejo como o mais interessante e fundamental, que é a oposição que você faz entre “verdades inteligíveis” e completa subjetividade que justifica um posso-querer arbitrário. Primeiramente, gostaria de saber o que você chama de “verdades inteligíveis”, e com base em que sistema de princípios fundamenta sua afirmação a respeito desse ser-próprio da mulher [não estou refutando a validade da sua posição, mas quanto mais se souber o ponto de partida, mais claro pode ficar o debate]. A segunda questão é que não acredito que a oposição se dê entre verdades inteligíveis e completa subjetividade. Um sistema de valores a partir do qual operamos é em si mesmo um fundamento ético para nossas escolhas, que não é em nada subjetivo, mas é inter-subjetivo. Agora tendo a falar a partir da teoria do autor com o qual eu trabalho, que defendeu [e tentou mostrar a partir de estudos empíricos] que os valores “humanos”, isto é, da coletividade, são sagrados, porque aquilo que é sagrado [tanto o sagrado religioso, quanto o sagrado laico e até mesmo o sagrado – enquanto inviolabilidade – dos sistemas filosóficos] o é justamente porque é produto da coletividade, porque são ideias que em algum momento da história adquiriram um estatuto muito especial, porque pareceram razoáveis e fundamentadas às consciências que, a partir de um mecanismo de transfiguração, passaram a gozar de um estatuto sagrado, constituindo-se como ideais a partir do quais regulamos nossas vidas. E com essa afirmação esse autor não pretendeu diminuir esses valores, muito ao contrário, ele tinha uma grande “fé” na capacidade do gênero humano de, a partir do constante e ininterrupto debate, criar ideais que sejam cada vez mais propriamente humanos. Mas quando certas questões não são objeto de um consenso, como o caso do aborto, a coisa mais razoável a se fazer é continuar debatendo com os melhores argumentos que se puder encontrar, quem sabe, em algum momento, chegaremos a uma posição mais consensual a respeito, fundamentada a partir de um ideal que nos parece o melhor possível – embora nada garanta que isso irá acontecer. Não é porque uma questão parece difícil que devemos tentar achar imediatamente uma resposta definitiva, apenas para não ficarmos em suspenso. E isso não me parece constituir uma ameaça a consensos já estabelecidos, que são “sagrados” para o conjunto da sociedade e que ninguém ousa questionar, como, por exemplo, a condenação à pedofilia, ou simplesmente a interdição de matar qualquer um que divirja de nós ou nos cause incômodos. Mais uma vez, dizer que isso é um sagrado construído pela sociedade no decorrer de sua história não diminui em nada seu valor, mas é uma lembrança de que devemos zelar por eles, porque são valores que definem quem nós somos. E é preciso lembrar que esses nem sempre foram valores consensuais, basta lembrar que já se apoiou e se justificou a queima dos hereges na fogueira, que o povo apoiou a condenação de Sócrates e que Cristo não teria sido crucificado se não se tivesse apelado à vontade da maioria. Ou seja, nem sempre o que será o ideal de amanhã encontra pleno respaldo na opinião pública de hoje, embora seja do seio da opinião pública que surgirão os novos ideais que irão orientar nossa ação e nosso pensamento.