Quando
nasci, a ditadura vivia seu ocaso, e quando aprendi a ler e a escrever, já era
parte do passado. Nunca senti na pele o que eram aqueles tempos, mas as
descrições dos livros de história e sobretudo as experiências narradas por
familiares e amigos bastavam pra que me sentisse privilegiada por ter nascido
em outra época. Aprendi também havia corrupção, e muita! A diferença é que não
era possível a denúncia. A única coisa que se “investigava” eram crimes
políticos. Descobri que o medo era um sentimento generalizado. Era todo mundo. Uma
mulher poderia ser violentada por qualquer agente da lei, seu corpo seria
devorado por vermes antes que fosse encontrado, e seu sumiço seria explicável pela
menção de que era suspeita de ser comunista. É isso a que chamamos de estado de exceção: quando não há
direitos que protegem os indivíduos contra arbitrariedades.
Sempre
tive como heróis e heroínas as pessoas que arriscaram suas vidas pra acabar com
aquele regime, que construíram um estado
democrático de direito. Aliás, faço uma pergunta para quem defende de forma
apaixonada o impeachment da presidenta Dilma e a “luta contra a corrupção” a
qualquer custo: você sabe o que é um
“estado de direito”? De forma simples, significa um regime político no qual
a vida coletiva é regida por leis que estão contempladas na Constituição
Federal. Significa que, para que um ato seja considerado crime, precisa ser
denunciado e julgado por um tribunal. É por isso, por exemplo, que um indivíduo
acusado de assassinato não pode ser linchado em praça pública: seu crime
precisa ser demonstrado, e o tribunal decidirá qual é a pena que lhe cabe. Isso
serve para que nem o Estado, nem os cidadãos, façam execuções sumárias baseadas
em suas próprias noções de justiça.
Durante
minha trajetória, sempre me pareceu evidente que a vigência do estado
democrático de direito era um fato dado. Sempre acreditei que minha luta seria
por ampliar esse estado de direito, para que tanto ricos como pobres pudessem
ter um julgamento justo. Construí o meu caminho com a certeza de que a luta,
agora, seria para garantir os direitos da comunidade GLBT, para erradicar o
machismo das nossas estruturas sociais e psíquicas, para que as pessoas
historicamente excluídas dos “bens da nossa civilização” pudessem ter acesso à
educação, comida, diversão e arte.
Nunca
pensei em ouvir na imprensa qualquer coisa que maculasse a inviolabilidade do
estado de direito, que se justificasse o
não cumprimento da legalidade para a condenação de alguém. Nunca imaginei
que precisaríamos voltar a nos unir em praça pública em defesa de pilares
básicos da democracia. Jamais previ que choraria por me dar conta de que
preciso pensar com que cor de roupa posso sair de casa. Não passou pela minha
cabeça que em uma sexta-feira às 08 da manhã eu sairia para correr no parque e
sentiria um frio na espinha ao encontrar no caminho a tropa de choque empunhando
armas e escudos.
Depois
desse preâmbulo, vamos a algumas considerações pontuais, que resumem meu
posicionamento nesse momento tão particular de nossa história. Sobretudo,
espero dialogar com quem tem sustentado um posicionamento diferente do meu, mas
que sei que também está comprometido com a ideia de construir um mundo cada vez
mais justo.
1)
Ameaça
ao estado de direito: As transformações sociais são lentas, por isso
precisamos prestar atenção nos sinais, nos indicativos de tendências. A
divulgação dos grampos feitos durante a operação Lava-Jato foi ilegal, muitos
magistrados têm chamado a atenção para isso. Tanto o Juiz Sérgio Moro quanto
boa parte da imprensa, insistem em dizer que o conteúdo das gravações é mais
importante do que o fato de serem ilegais. Primeiro, não há nenhum indício de
crime nas ligações divulgadas; isso bastaria para justificar que não fossem veiculadas.
Em segundo lugar, no telefonema considerado mais importante, entre a presidenta
Dilma e o ex-presidente Lula, houve uma manipulação do sentido, com distorção
de palavras. A Rede Globo continua insistindo que o documento enviado a Lula
com o texto de sua nomeação como ministro deveria servir como salvo-conduto. No
entanto, como ficou demonstrado por ocasião do pronunciamento da presidenta
Dilma, o documento não estava assinado por ela, portanto, não poderia ser usado
para tal fim. O documento foi enviado para que o presidente Lula pudesse
assiná-lo antes, caso não pudesse comparecer na cerimônia de posse. A mídia fora
avisada, e ainda assim, construiu essa versão. A Globo insisti na tese de que a
gravação é muito séria pois revela a intenção de obstrução de justiça. O que
temos aqui são dois crimes graves: a
divulgação ilegal de escutas e a manipulação de dados para a construção de uma
informação equivocada.
2)
Sobre
o Golpe: Há muitas formas de acontecer um golpe. Não é apenas quando o
exército toma as ruas e impõe à força um regime ditatorial. Aliás, isso foi
apenas uma parte do que aconteceu em 1964. Primeiro, cria-se uma imagem
distorcida da realidade, dando a ideia de que se vive num caos absoluto;
depois, se apresenta uma possibilidade de salvação. A primeira coisa a se
considerar é que sempre há interesses em jogo. Tanto no início da década de
1960 como agora, houve um crescimento importante da esquerda e de seu projeto econômico,
que ameaçava reduzir os privilégios do grande capital nacional e estrangeiro.
Por exemplo, desde a descoberta do
pré-sal, o Brasil vem sofrendo ataques por parte da imprensa internacional,
especialmente aquela vinculada a setores interessados em sua privatização (veja
na plataforma wikileaks documentos que atestam isso - eu tinha colocado o link direto para essas informações, mas aí o Facebook bloqueou o compartilhamento!). A reeleição de Dilma frustrou essas expectativas.
Desde então estamos sendo bombardeados com a proposta de impeachment, que está
mais assentada na ideia generalizada de que está tudo errado do que em
evidências legais. O único argumento concreto é o das pedaladas fiscais que, prática
recorrente, é considerada uma opção de gestão das finanças do estado. Não há base,
portanto, para o impeachment. Paradoxalmente, a imprensa vem encorajando
sistematicamente uma revolta popular que ataca o governo, com o pretexto de
combate à corrupção. As informações são apresentadas de forma parcial, dando a
ideia de que o PT é a causa de todos os problemas do país. Um golpe ocorre quando as pessoas são convencidas a acreditar em uma
coisa e agir de modo a beneficiar quem constrói esse discurso. Não creio
que todas as pessoas que estão na rua pedindo o impeachment defendem um golpe.
Acho que boa parte é muito bem intencionada. Elas também estão sofrendo um
golpe, pois são levadas a acreditar em meias verdades. Em uma leitura mais
geral da situação, meu diagnóstico é o de que o golpe começou durante as
manifestações de junho de 2013, quando a imprensa, de uma hora pra outra,
passou a apoiar o movimento, anulou suas pautas originais e o transformou em um
protesto “contra a corrupção e contra tudo o que está aí” (à época, escrevi aqui
sobre isso). Pegou carona em forças catalizadoras da esquerda e elaborou um
discurso de pseudo-unificação do país. Afinal,
quem é contra o combate à corrupção? Com isso, conseguiu-se um mote
eficiente para despertar ódio, canalizado contra um partido, contra o governo,
contra a política. A busca desenfreada pelo lucro não vê cor, não vê ética, não
vê pessoas. É uma lógica na qual todos os meios são justificados para alcançar um
fim: lucro, dinheiro, poder. É por isso que grandes corporações internacionais
apoiam guerras, não importa se justas ou injustas, e é por isso que apoiam
ditaduras. Se a democracia estiver sendo rentável, ótimo, que fique. Se um
programa de redistribuição de renda estiver dando lucro, porque amplia o
mercado consumidor, tudo bem, pode permanecer. Mas quando democracia e a redistribuição
de renda passarem a ser um problema, tchau,
bye bye, hasta la vista.
Os grupos interessados em
desbancar esse governo não hesitam em fazer parcerias com indivíduos com quem
provavelmente não gostariam de jogar golfe, como os Bolsonaros da vida e seus
apoiadores. O grande capital não se importa se há ou não legalização do aborto,
se há ou não união homoafetiva. A rede globo bota beijo gay na novela porque dá
audiência. Mas a questão é: nessa intenção de derrubar o governo a qualquer
preço, ganha voz e legitimidade quem quer a volta da ditadura, quem não liga
pra direitos sociais, quem acha que Bolsonaro deve ser o herói da nação. O grande capital não se importa de abrir a
caixa de pandora, desde que isso lhe garanta a remoção dos obstáculos aos seus interesses. O problema de
negociar a alma é que chega uma hora em que se sente o mal roçando os pés. Acho
que o editorial da Folha do dia 18 de Março mostra isso: Opa! Ilegalidade pode
ser demais, pois ilegalidade para um pode acabar sendo pra todos. Talvez chegue
um ponto em que ninguém consiga controlar Moro, que ninguém consiga controlar o
ódio, ninguém consiga fazer frente a essa ideia de que em nome do combate à
corrupção pode-se suspender todos os direitos.
3)
Sobre
a corrupção: Eu votei no PT muitas vezes e defendo a importância dos
programas sociais realizados nesses anos de governo, mas não estou dentre
aqueles que acham que práticas de corrupção o isentem de julgamento. Continuo pensando
que os fins não justificam os meios. Práticas ilegais estão sendo investigadas
e muitos já foram condenados. Isso é combater a corrupção. O que nao se deve é colocar a lupa apenas sobre um partido num
contexto de práticas de corrupção que perpassam a maior parte dos partidos e
instituições públicas. Isso cria a ideia de que acabar com a corrupção é
derrubar este governo. Não é. Durante este governo aconteceram as mais amplas
investigações contra esquemas de corrupção. Ao contrário de momentos
precedentes na história, os acusados estão sendo julgados e penas aplicadas. O
intolerável são execuções sumárias, desrespeito aos procedimentos legais, o
enviesamento do foco e o linchamento público. É inadmissível a instauração de
um impeachment sem fundamento legal e a hipocrisia de uma comissão formada por
indivíduos investigados por esquemas de corrupção.
4)
A
crise: estamos atravessando uma dupla crise, econômica e política. Tornou-se
pouco vantajoso para os partidos da base apoiar um governo que esta sob os
holofotes da crítica pesada. Tem também o combate à corrupção, que está mexendo
com as estruturas. Se o processo estivesse ocorrendo de forma sensata, sem
tentativas forçadas de derrubar o governo, teríamos mais estabilidade. Sobre a
crise econômica, ora pois! O governo pode não ter tomado as melhores decisões, e não sei quais poderiam ter sido, por outro
lado, tenho certeza de que o caminho não é o sugerido por seus detratores, não
é o da austeridade, não é o da privatização, não é o da redução das políticas
sociais, não é o seguido pela Itália, Portugal, Grécia. Em virtude de meu
trabalho como pesquisadora na área de sociologia, fui convidada para falar em universidades
estrangeiras e pude ver de perto, ao longo desses anos, o aprofundamento da crise econômica que resultou da adoção das
políticas liberais: desemprego epidêmico, nenhum horizonte para os jovens,
desmonte do estado de bem estar social, crise nas universidades, fome. Aqui,
conseguimos resistir à primeira onda da crise, com uma política econômica que
focava no crescimento e no investimento público. Deu certo por um tempo, mas a
conjuntura política e econômica internacionais chegaram num ponto difícil de
resistir.
5)
Mea-culpa:
todo momento de crise abre a
oportunidade para o novo, para renovar crenças, criar outras práticas,
fazer um balanço do passado e sonhar com um futuro diferente. A tomada das ruas
no dia 18 de março, em defesa da democracia, traz a esperança de que estamos
juntos e somos muitos. Para que os ideais de justiça e liberdade continuem no
nosso horizonte, precisamos fazer um esforço coletivo de reflexão. Precisamos
entender onde falhamos, por que a derrubada da ditadura não bastou para consolidar
a democracia como um ideal inabalável e universal do nosso país. Gostaria de
concluir compartilhando algumas considerações, que são um convite para pensar
sobre o futuro. O PT falhou com seus militantes ao negociar princípios, ao não
ouvir de modo radical as suas bases. Certos assuntos essenciais para estruturar
uma visão de mundo de esquerda não poderiam ter sido negligenciados: questões
ecológicas, morais, educação, política de ciência e tecnologia. No caso da
universidade, por exemplo, a transformação do meio acadêmico em um mercado
ranqueado terá consequências nefastas para a produção da ciência de base e para
o desenvolvimento do espírito crítico, porque o tempo da pesquisa e do
pensamento estão sendo corroídos pelo produtivismo. Em relação à educação de
forma mais ampla, temos pelo menos dois problemas sérios: o baixo incentivo
salarial e a falta de uma educação que ensine a pensar. Nós, enquanto
sociedade, falhamos em educar os indivíduos com uma forte crença no estado de
direito e na importância da justiça social.
Se quisermos que nossa democracia se aprofunde, precisamos trabalhar duro, para
que ela se torne uma crença para todo brasileiro e toda brasileira. Só a
partir dessa crença compartilhada no seu valor indiscutível poderemos ter um ambiente
estável para travar nossas batalhas. Todos nós que estamos à esquerda do
espectro político precisamos superar disputas fratricidas para construir lutas
fraternais.
Temos
diante de nós uma nova oportunidade de aliar forças na construção de um país
melhor, cerrar fileiras contra um inimigo comum. Que tenhamos serenidade para
aproveitar esse momento.