Que diabos está acontecendo?
Uma análise em três
atos.
Por Raquel Weiss
Professora
de Sociologia da UFRGS - Socionautas
Contato: weiss.raquel@gmail.com
Diante da
multidão que tomou as ruas em várias cidades de nosso país na última Segunda-feira, dia 17 de Junho, o tema mais
recorrente que se ouvia na imprensa era a indagação a respeito do que está acontecendo. Quem são? O que querem? De onde
surgiram? Jornalistas, acadêmicos, políticos, por todo lado se ouvia esse tipo de pergunta.
Responder a essas perguntas é algo bastante complicado, e não creio que exista uma resposta única e definitiva, até porque se trata de um
movimento em curso. Mas isso não é desculpa para nos furtarmos a uma tentativa de compreensão, e o que proponho é ensaiar uma análise a partir do repertório teórico que considero adequado, no âmbito de uma abordagem propriamente sociológica, e a partir da consideração de eventos, ideias, declarações e ações com os quais tive contato,
e que me levaram a construir esse diálogo conjuntural. Apresento,
então, uma análise em três atos, que considera não as manifestações como fenômenos isolados, mas a situação na qual estão inseridas, que contempla os vários atores que agem e reagem aos protestos. Cada ato
corresponde a diferentes momentos desse processo e coloca o foco em diferentes
aspectos envolvidos.
Primeiro Ato: É Sobre 20
Centavos
As
manifestações que protestavam contra o
aumento das passagens de ônibus ganharam muita
visibilidade por todo o país, sobretudo em virtude do
enorme volume de pessoas que foram às ruas para expressar seu
descontentamento. Na mídia, nos corredores, por todo
o lado, ouvia-se as pessoas perguntando: todo esse “barraco é mesmo só por causa de 20 centavos?”. Sim, era. Quer dizer, mais
ou menos. Essa era a pauta mais evidente, mas não é uma pauta que surgiu assim, do dia pra noite. E nem era o único objeto de manifestações. Várias outras manifestações vem ocorrendo no país, e no mundo, diga-se de passagem, reivindicando as mais
diversas causas, desde as mais explícitas, como no caso da chamada
“marcha da maconha”, até movimentos cuja compreensão é mais complexa, como o Occupy, nos Estados Unidos.
No caso
específico do Brasil, o que
precisamos entender é que já há muito tempo tem acontecido
uma movimentação incansável por parte da sociedade civil, mas sob formas que não estávamos acostumados a considerar
como formas de atuação “realmente políticas”, porque fogem dos padrões tradicionais de “mediação”. Não são nem partidos, e nem movimentos sociais estruturados de
formas mais tradicionais, com estruturas hierárquicas e formas de organização centralizadas e bem evidentes.
Trata-se
de um outro universo que, para o olhar do observador desavisado, pareceria como
“um bando de jovens fazendo festa”, ou coisa do gênero. Surgem expressões que não são familiares às análises tradicionais sobre a vida política: coletivos, horizontalidade, intervenção urbana. Os nomes mais burocráticos e sisudos que denominam os partidos e os movimentos
sociais tradicionais dão lugar a nomes menos
pretensiosos, cujo sentido muitas vezes não é explícito: “Existe amor em SP”, “Movimento Passe Livre”, “Fora do Eixo”, “À Deriva”, “Massa Crítica”, “Matilha Cultural” e assim por diante.
Ok, eles
não tem uma organização hierárquica, nem querem assumir a forma de partidos. Mas, o que
eles querem? Talvez a resposta seja tão variada quanto a existência desses “movimentos”. No entanto, talvez seja possível esboçar alguma forma de pensar uma
unidade: são pessoas, em sua maior
parcela “jovens”, que se reúnem, em virtude de alguma visão de mundo compartilhada, com a intenção de interferir de algum modo no atual estado de coisas. No
geral, são promovidos muitos eventos e
discussões nos quais as causas mais
caras a cada movimento são debatidas: pode ser a
mobilidade urbana, a luta em favor da legalização do aborto, da promoção de causas identitárias, etc. etc. etc. O ponto
de partida é sempre o diagnóstico de que alguma coisa não vai bem, seja na cidade, no
estado, no país ou mesmo no mundo inteiro.
Os “inimigos” combatidos por esses movimentos
não são tão facilmente identificáveis como em momentos
passados. Talvez seja mesmo uma resposta à falta de sentido que
caracteriza o nosso mundo contemporâneo. Porém, a ausência de um “único inimigo” contra o qual lutar não tem como consequência a falta de propósito ou a ausência de uma causa concreta. O
inimigo não é mais “a ditadura”. Eles valorizam a democracia, e só são possíveis porque existe a democracia. Não querem acabar com ela, não querem dizer “isso tudo é uma grande porcaria, vamos
jogar tudo fora e começar do zero”. Eles querem, muito ao contrário, tomar posição diante dos milhares de problemas concretos que não são resolvidos pela simples
existência de uma democracia. Até porque sabemos muito bem, a democracia é apenas uma forma, cujo conteúdo é construídos pelas pessoas que vivem
nessa democracia, pessoas que têm a responsabilidade de pensar
sobre o que queremos, sobre as consequências das leis, das práticas, das políticas públicas.
Trata-se
de movimentos que abraçam a democracia, mas não se contentam em deixar as decisões a respeito de tudo
nas mãos dos representantes eleitos.
Mas não são contra os partidos. Não querem abolir nem substituir
o papel desempenhado pelos partidos. Talvez aqui exista uma outra concepção de democracia: não é nem a democracia representativa, do tipo, votei e paro de
me preocupar, e nem uma democracia direta stricto senso. É a ideia de que a política é feita todo dia, por todo mundo. É a reação às injustiças sociais e desrespeitos
indenitários cometidos diariamente, e
que de quando em quando são exacerbados e acabam por
virar lei: o aumento no valor do transporte público, legislações sobre o aborto, leis que tratam da homossexualidade como
doença, e assim por diante.
É uma maneira de se organizar
em torno de valores compartilhados, e que são retrabalhados e refletidos
no contexto desses grupos. E, é claro, muitas pautas são transversais, são compartilhadas por vários desses movimentos e representam a visão de mundo de muitas pessoas. É um pouco isso o que aconteceu com os protestos diante do
aumento das passagens: por todo o país já havia muitos grupos mobilizados e refletindo sobre as várias decisões políticas, inclusive com discussões intensas sobre o
significado do espaço público e a questão da mobilidade. Quando governos
municipais por todo o lado anunciam que vão aumentar o preço de um serviço que já é altamente precário, o movimento ganha uma força inimaginável. São pessoas que já aderiam a essa causa e que têm um alto poder de mobilização viabilizado, é claro, pelas redes sociais. Trata-se de uma causa
considerada justa por uma parcela imensa da população, que leva muita gente pras ruas, por causa de 20
centavos.
Segundo Ato: Os Estudantes Baderneiros e a Sociedade de Bem
A consequência inevitável de uma reivindicação que conquista muito adeptos e que não é atendida é, evidentemente, o protesto. E protestar, nesses casos, não é coisa apenas de Facebook e
Twitter. Sim, essas são plataformas importantes, de
troca de ideias e de mobilização. Mas a coisa acontece, mesmo,
quando se toma as ruas. Com isso surge um fato inteiramente novo: os indivíduos que antes estavam isolados, ou que atuavam em pequenos
grupos, agora se reúnem numa grande massa.
Caminham juntos, cantam juntos, batucam juntos, gritam juntos. Aqui, ocorre uma
metamorfose. Aquelas ideias que eram consideradas boas e justas, transformam-se
nos valores últimos e irredutíveis, adquirem um caráter praticamente sagrado,
inviolável. E os indivíduos sentem-se mais fortes: aquilo que ele é no grupo não é o mesmo de quando ele está sozinho. E tudo o que é produzido nesse contexto passa a ser investido dessa
energia extraordinária.
Trata-se
do processo que na sociologia é chamado de “efervescência coletiva”, um fenômeno que tem um caráter “dinamogênico”. A ideia de dinamogenia,
oriunda da biologia, significa uma alteração das funções orgânicas em função de uma intensa elevação do tônus vital, engendrada por uma superexcitação. Os momentos de manifestação são momentos de efervescência por excelência, são momentos nos quais tudo
parece fazer sentido, o indivíduo experiência uma energia enorme, e isso faz com que a causa pela
qual ele lute se torne a coisa mais importante de sua vida, ao menos naquele
momento. E o que é mais importante é que essas situações de efervescência podem fazer com que os
indivíduos sejam capazes de atos
heroicos inimagináveis, mas também de atos destrutivos. É impossível prever o rumo das coisas, e é difícil saber como cada indivíduo reage a essas situações.
Seja como
for, a experiência de tomar parte numa
manifestação desse tamanho é algo transformador, inesquecível e que os indivíduos não querem que acabem. E, de
fato, para que os valores gestados nesse contexto continuem a ter esse mesmo
apelo, é realmente necessário reviver periodicamente esses momentos, para renovar a fé nesses ideais. E isso garante uma continuidade do
movimento e, inclusive, faz com que ele cresça.
Mas,
evidentemente, a tomada das ruas tem uma outra consequência: a reação por parte de quem tem sua
rotina perturbada. Quem não está lá dentro, quem não partilha dessa causa, vê nessas manifestações nada mais do que um incômodo. E as pessoas que param
suas vidas pra fazer esse tipo de coisa, só pode mesmo ser um bando de
estudantes desocupados, com a vida garantida, que só querem farra e atrapalham a vida dos cidadãos de bem que precisam trabalhar.
E, diante
desse diagnóstico, fartamente reiterado
pela “grande imprensa”, é mais do que natural que os
cidadãos de bem queiram a ordem, o
que implica acabar com o bloqueio do trânsito e qualquer outra coisa
que interfira na rotina. E quem é responsável por restaurar a ordem? A polícia, evidentemente.
Num
determinado momento, a polícia não apenas reage diante de situações consideradas ilegítimas [como pichações, depredações e afins], mas faz algo mais
do que isso: faz uso da força [com todo o aparato à disposição] para conter a própria manifestação, como se a manifestação, em si mesma, fosse um ato ilegítimo. Refiro-me, evidentemente, ao dia 13, em São Paulo. Ninguém foi poupado. Não importa quem fosse ou o que estivesse fazendo, sobrou pra
todo lado.
As cenas
registradas feriram de tal modo a consciência pública, provocando até mesmo a reprovação por parte de organismos internacionais, que ficou difícil aceitar essa ação como legítima. Ficou difícil aceitar que o desejo de
ordem valesse mais do que o Estado de Direito, que os Direitos Humanos, que a
liberdade de expressão democrática. E é aqui que começa a reviravolta nessa história.
Terceiro Ato: Não é
só
sobre 20 centavos – é
sobre tudo
No dia
seguinte ao evento que acabou de ser narrado, os meios de comunicação, de forma quase milagrosa (?) começaram a contar novas versões sobre o movimento: houve
desrespeito por parte da polícia. Os cidadãos de bem devem se mobilizar contra as arbitrariedade. O
movimento é legítimo. Os cidadãos de bem devem fazer parte do
movimento, para lutar por um Brasil melhor, contra a corrupção, contra tudo. Uma onda de patriotismo invade o país. Parece que todos voltam a sentir o pertencimento à nação e querem fazer parte desse
momento histórico. Ou, dessa grande festa.
Até mesmo jovens que nunca
passaram perto de uma manifestação aderem ao movimento, o que,
em princípio poderia ser algo muito
positivo.
Diante
das centenas de milhares que tomam as ruas, vê-se por todo lado a felicidade
porque “o gigante acordou”. Entre sexta e segunda feira, algo aconteceu que o país acordou. A imprensa que antes tecia comentários depreciativos, agora exalta o movimento, a plenos pulmões. A grande pergunta é: o que aconteceu?
Creio que
ninguém em sã consciência acredite que isso
significou uma tomada de consciência por parte da imprensa.
Houve, sim, um golpe de mestre. Podemos aqui recorrer a uma metáfora. Em vez de bater de frente contra uma força opostas a seus interesses, recorreu-se a algo que
constitui o princípio fundamental de artes
marciais: eu não bato de frente, eu absorvo e
devolvo essa energia na outra direção. O que derruba o oponente é a força que ele mesmo engendrou.
Simples, efetivo, genial.
Ou seja,
em vez de criticar as manifestações, transformaram-na em algo a
favor de seus interesses, e incentivando uma massa ainda maior de pessoas a
tomar parte nelas. A efervescência que já era grande tornou-se gigante. E aqui é preciso introduzir uma consideração absolutamente crucial: a efervescência é, em si mesma, neutra. Ela é uma energia que pode criar, conservar ou destruir. Ela
confere um caráter de sacralidade a qualquer
ideal que os indivíduos naquele grupo acreditam.
A manifestação não é um lugar de debate, de formação de opinião. É um lugar no qual as opiniões já formadas se manifestam e passam a ganhar uma intensidade
antes impensada. E não é difícil de imaginar o que acontece
quando há dezenas de pautas numa mesma
manifestação. E mais, quando não são pautas apenas diversas, mas
contraditórias. Não apenas pautas, mas cosmologias divergentes.
O
movimento que começou como algo supra-partidário, mas alinhado com visões de centro-esquerda, e
inclusive contando com apoio de partido de esquerda, de uma hora pra outra se
veem lado a lado com pessoas que defendem que não se tenha partido ali. E que
têm um discurso que é contrário ao governo brasileiro. Contra a presidente da República. Há gritos de “Fora Dilma”. E, diante disso, dois cenários pareciam possíveis, e que seriam muito interessantes
para a oposição: um impeachment, colocando
Michel Temer na linha sucessória, ou a derrota nas próximas eleições, preferencialmente com vitória de um candidato de centro-direita.
E se a
história já estava complicada desse jeito, a coisa não para por ai. Não são apenas esses os atores em jogo. Como afirmou o cientista
político Paulo Peres, esse
movimento catalisou toda sorte de insatisfação e abriu a “caixa de pandora”, de onde tudo pode surgir:
apartidários críticos ao governo, anarquistas que têm na depredação do patrimônio uma das formas de atuação, neonazistas que são contra partidos de esquerda, movimento negros,
homossexuais, etc. Mas a mídia ainda insiste em mostrar
que as confusões são protagonizadas por uma minoria, que o movimento é lindo.
Hoje,
quinta feira, dia 20 de Junho, essas diferenças se acirram. A luta sobre os
20 centavos já foi conquistada. As dezenas
de pautas continuam nas ruas, com novos desdobramentos. Em São Paulo, agressões entre os próprios manifestantes, especialmente por skinheads e
neonazistas. No Rio de Janeiro, atos extremos de depredação a prédios públicos. Em Porto Alegre, uma combinação de uma ação ostensiva da Brigada Militar
somada a atos de depredação a pequenos estabelecimentos
comerciais, protagonizadas por pessoas que não se consegue identificar. Não se sabe quem são ou o que querem. O
sentimento de tensão e insegurança leva a um questionamento sobre tudo o que está acontecendo. Cada qual significa a seu modo o que está acontecendo. Mas, sem dúvida, surge, de todos os
lados, uma sensação de que algo não está muito certo.
Hoje
mesmo, peguei um taxi onde tive uma conversa intrigante. O motorista, que já foi cara-pintada, afirmou que era a favor da manifestação. Que, na verdade, achava era que se deveria era quebrar
tudo em Brasília, tirar todo esse governo
de lá. Perguntado sobre quem ele
sugeriria que fosse colocado no lugar de Dilma, tenho uma resposta que não esperava: “podia ser um militar, que eles
não tem essa coisa de política, e poderiam colocar ordem
na casa”. Nem petistas, nem tucanos,
nem qualquer vitória de extrema esquerda, nem
de movimento social algum.
Trata-se
do paradoxo das consequências. Somos artífices da nossa história, mas as nossas demandas não são as únicas em jogo. Há interesses de todo tipo,
alguns deles tem por trás um aparato de propaganda e
de investigação além de nossa capacidade de imaginação. Esse é o momento de sermos
inteligentes também. É o momento de usar mais a razão do que apenas o sentimento,
pois é preciso estratégia, lucidez. É o momento de, mais uma vez,
tomar a história com as próprias mãos, fazendo um diagnóstico sério do presente pra
conseguirmos construir um futuro no qual sejam preservados aqueles valores que
não são mais caros, dentre eles, a
liberdade, a liberdade responsável, no sentido mais profundo
do tempo, a liberdade de continuar a expressar nossas demandas e nossa visão de mundo.